Depois que o Sr. S partiu, ficou a Sra. M todos os dias no
portão esperando o momento em que o Sr. S voltasse arrependido. Apesar da
mudança de tom que decretara o fim desta vez, a Sra. M achou que fosse mais uma
das indisposições costumeiras do marido. A Sra.M. habituara-se a ser uma coisinha
que causava indisposição, então mal se apercebia nos espaços, e como estes
foram ficando pequenos ao longo do tempo: as paredes decretando estado de
decadência, a pele embolorada pelo úmido choro que preenchia os cantos.
A verdade é: quando ele se foi, surgiu um imenso alívio na
Sra. M, até comeu mais de dois biscoitos e escolheu o sabor do suco que
tomaria. Sempre deixou escondidinho embaixo dos panos de prato um pacotinho de
suco de melancia que esperava o momento de ser tomado. O gosto da vitória era
de mofo, pois estava vencido – era a vitória tardia e solitária da Sra. M, que
experimentava depois de muito, sorrir com os dentes vermelhos de pó de melancia.
O tempo passou, e os dias então se tornaram desiguais. O Sr. S não retornou à
casa, e em cima da mesa já se juntavam os pratos de comida fria à espera da
boca a ser alimentada. Os travesseiros começaram a se esvaziar do cheiro dele, e a
Sra.M foi invadida pela cruel ideia de que, a partir daquele momento, faria
escolhas por si apenas. A solidão então passou a espreitar a porta todos os
dias de manhã. As moscas invadiram a casa em uma tarde ensolarada em busca da
comida fria em cima da mesa: caíram todas no chão de desolamento (para aqueles
que são muito atentos, era possível até ouvir um “ai de mim”, vindo de um
corpinho mínimo de anteninhas torcidas de um tedioso vazio ). As pessoas na rua
a conheciam como “a senhora do portão”, mas não sabiam ao certo a razão dela estar sempre lá: quase ninguém lembrava do Sr. S, pois a Sra. M. estava quase
sempre sozinha nas suas coisas. Conversava sempre consigo baixinho sobre suas
futriquinhas para não irritar o marido. O que a Sra. M. não percebia é que a
ausência do Sr. S. foi sempre presente: havia um limbo de distância entre ela e
ele, mas gostava de ter um corpo preenchendo a cama de noite.
Para resolver o problema, experimentou escrever seu nome em
todos os cômodos da casa. Escreveu Sr. S no banheiro, na cozinha, corredor, no
travesseiro, na sala e no meio de suas pernas. A Sra. M acreditava que as
palavras tinham algo de mágico, então, escrevendo o nome do marido pelos
espaços, elas o corporificariam e preencheriam a falta. Mas esqueceu que o
papel de parede já descascava; chegou finalmente o momento em que a fronha teve
que ser lavada, o corredor era de passagem e o meio de suas pernas, bem, por
banho ou por um desejo sinistro de toque, fez do nome do Sr.S um borrão de
tinta. E assim viu os dias escorrerem, a tinta ir se apagando e o sentimento de
espera se tornar contínuo. Chegou o momento em que havia apenas cadeiras em sua
casa, e movia-se por entre os cômodos com um suspiro sonhador que era rompido apenas quando percebia a presença de uma lesma escalando lentamente as quase paredes
de sua casa. “Sou uma lesma” um dia concluiu e tentou se matar comendo um
punhado de sal. Só houve sede, e a sede despertou finalmente a lembrança de seu
corpo, e depois de muito tempo a Sra. M. gritou um grito pavoroso que preencheu
toda a casa, a rua e um pouco da rua de trás. Chacoalhava-se em um soluço sem
fim, e em um arroubo de violência desmedida, arrebentou todas as cadeiras. Os
vizinhos escutavam sem intervir “ finalmente, Sra.M., finalmente”.
Vieram dias de chuva, e a Sra.M. continuava estendida no
chão debaixo das goteiras.
Então veio um dia mais claro. A Sra.M. levantou. Pegou uma
vassoura e uma pá, e começou a varrer o estrago. Foram quase 147.563 kg de
estrago e mais algumas cadeiras. No outro dia foi a vez de retirar as lesmas das
paredes, que a essa altura, se assemelhavam à cobras mansas. A Sra.M. ficou
banhada daquela gosma lesmática por alguns dias. Tirou o resto do papel de
parede e a deixou desnuda: por baixo do papel, havia um tom suave de lavanda
encardida. Fez um funeral digno para as moscas angustiadas, e finalmente jogou
a comida fora. Lavou todos os pratos.
Já era primavera quando o Sr.S. voltou. Do portão viu que o
jardim havia sido modificado e que cresciam pequenos arbustos nos fundos. A
luz estava acesa e a casa havia sido pintada. Não pôde deixar de sentir um
sentimento familiar de acalanto e lamentou a sua longa estadia fora. Tirou o
chapéu, passou os dedos no cabelo e saudoso refez o caminhozinho do portão até
a entrada da casa. Abriu a porta. Um cheiro de comida invadiu-lhe as narinas
e gritou-lhe ao estômago. Chamou a Sra.M., e de novo, e mais uma vez.
Estranhando a demora, encontrou um bilhetinho em cima da cômoda: “ Benzinho,
sua comida está em cima da mesa. Não me espere para o jantar, com Amor, Sra.M”
Bem, a comida estava fria.
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