terça-feira, 9 de setembro de 2014

O dia que eu briguei com um mendigo por causa de uma cadeira

Ele nem era tão mendigo assim, caso contrário, uma centelha de bom senso teria me invadido naquele momento do mundo em que o vi carregando a minha cadeira em cima da carreta improvisada. O que ele não queria entender, o egoísta, é que, se ele tivesse me deixado ficar com uma, UMINHA, ele teria mais cinco cadeiras para ser feliz! Mas quis levar tudo, o troglodita malfeitor, e me deixou ali na calçada tristonha a sonhar com espaldares trabalhados e assentos de couro. Era uma cadeira daquelas que a gente só vê no lixo mesmo, quando alguém se cansa de guardar velharia e troca por uma de design mais arrojado, sabe, modernoso (tenho uma vizinha que adora falar modernoso, se sente super modernosa falando modernoso) e nem se importa de jogar tudo fora. Era uma tarde ensolarada quando as encontrei ali na Rua Noruega, no cafona e equivocadamente rico bairro do Jd. Europa. Estava ali nas minhas andanças trabalhais fotografando a casa dos ricos pra falar mal deles depois (atividade divertidíssima: engajar-se a denunciar o mal gosto estilístico da velha elite que, inconscientemente copiamos adquirindo a versão mais barata e ridícula nas lojinhas do bairro: no meu caso, no lixo), quando as vejo: recém abandonadas perto da lixeira de uma casa que não se podia ver o fronte, pois era religiosamente guardada por muros, trepadeiras e um portão descomunal, cômico e desnecessário em sua bestialidade considerando uma calçada tão curta; sua madeira reluzia engordurada aos raios de sol, o estofado de couro arranhado, preso por tachinhas de metal. A câmera fotográfica pesando na minha mão, o rebuliço das borboletas do estômago, atirei-me sobre elas como nunca me atirei em cima do ser amado, a perfeição de um ângulo de 90º entre coluna-bacia-fêmur. Suburbanamente comecei a bater palmas diante o portão quimérico, que, percorridos longos minutos, foi aberto pesadamente por uma empregada desconfiada se aquilo era um chamado ou palmas emocionadas para tal residência de estética duvidosa. Clamei por uma cadeira, uma mísera cadeira, e ela me olhou de um jeito engraçado de "ou é pobre muquirana ou cultiva o espírito de um" e, desprezando meus anseios aristocráticos falidos, disse que podia levar qualquer coisa que estivesse na rua que não era problema dela.

Foi a felicidade.

Mas, mas...como as coisas intensas são breves, houve o fatídico momento dos erros: não tomei-a em meus braços de imediato. Continuei andando para terminar o que me havia proposto a fazer, falar mal das coisas, e na volta, ó malditas escolhas, na volta a levaria comigo. Quando me dirigi saltitante como uma gazela no cio para buscar a cadeira, deparei-me com o meu algoz: sem metade dos dentes, a pele judiada de sol, um boné do Leonel Brizola: ele havia enfiado, todas, TODAS as cadeiras na sua carroça.

-Moço! Moço! Essa cadeira é minha moço, eu a vi primeiro, a empregada falou que eu podia levar uma, eu estou trabalhando, sabia? Trabalhando, por isso não levei na hora! É verdade, pergunta pra jagunça ali se não faz 15 minutos que passei  e pedi pra levar. OU! Estava trabalhando, você vai levar tudo mesmo, eu estou pedindo por favor, moço!

Ele me olhava achando graça, mas disse que levaria todas, porque já tinha uma mesa e a mesa precisava de seis cadeiras. Caralho! Quem precisa de seis cadeiras? Senta o mais novo no chão, come na cama, janta coxinha, moço eu queria tanto uma cadeira! E impassível balançava a cabeça em negativas de que não abriria mão da minha cadeira

-ô moça, eu preciso delas, moro com a minha mulher, minha sogra, cinco filhos, três netos, um cachorro, uma preá, o sobrinho com o melhor amigo, a prima de segundo grau com duas crianças, o ex cunhado com a mulher nova e a minha irmã solteira! Vou lixar essas cadeiras, pintar de azul, vai ficar lindo! (O olho brilhava na perspectiva de como ficaria uma cadeira clássica, senhorial, elegante pintada com suvinil, ai meu paizinho)

Aquela visão me desesperou:

- Moço, qual seu nome?
-Bahia
-Moço, ninguém se chama Bahia
-Eu me chamo
-Não, não chama, ninguém me chama de São Paulo
-Mas as pessoas me chamam de Bahia, então é Bahia
-Não vou te chamar de Bahia
-Por qual razão?
-Seu nome não é Bahia
-Não, é Ênio
-Ênio foi meu professor de química
-Da Bahia?
-Não, Ênio de São Paulo
-Ah, eu sou da Bahia, por isso me chamam de Bahia

Vamos lá, Ênio: Não vou te chamar de Bahia, pelo simples fato de seu nome ser Ênio, e te chamarei de Ênio por não ser Bahia. E apelidos são para amigos, e você, Ênio, não é meu amigo, é um estorvador, um afanador de cadeiras. Não resisti, naquele momento já estava endemoniada:

-Ênio, eu preciso dessa cadeira, sabe, preciso mesmo, estou montando um apartamento, Ênio, eu vou casar! (Nesse momento uma sensação dolorosa me subiu pelo estômago: não só não ia me mudar, como a promessa de casamento havia ficado perdida em tempos passados em um namoro que há poucos meses se desfez e a ausência incômoda ainda passeava em mim: mas fui mais forte, engoli o choro e me concentrei, pois naquele momento havia coisas mais importantes) Ênio, adoraria ter uma cadeira dessas em casa no meu novo apartamento, eu e meu marido, viu? Marido, não tô juntando não, vai ter cerimônia, eu tenho até um vestido, da Dior, você sabe o que é? Combina com a cadeira. Vou casar Ênio, ter uns dois remelentos que vão adorar uma cadeira antiga, é o que falta para a minha decoração, você sabe (ou não, acha as coisas por ai e pinta de azul), é tudo muito caro, viver tá caro, muito caro! Vai ser a única cadeira da minha casa Ênio, como eu vou ficar sem cadeira, você tem cinco! Caralho me dá uma!

Juro que naquele momento casaria com o primeiro filho da puta que passasse só pra ter a cadeira. Mas ele não se sensibilizava:

-Ênio, você mora em uma casa invadida no fim da rua? Você mora no Jd. Europa? No CENTRO EXPANDIDO? Ou, eu moro no Tucuruvi, é bem mais periférico, eu mereço a cadeira! Você tem carreta pra carregar os 43 móveis, eu vou ter que carregar embaixo do braço, sou sofrida, olha a magreza das minhas ancas nem sei como eu vou parir os dois remelentos, por favor (e apelei, me rendi) por favor, Bahia!

Foi citar o estado que lhe pariu, que finalmente fitou-me nos olhos. Varreu-me o corpo todo, deu um breve suspiro e disse:

- Ô branquela, você já me torrou o saco, porra.

Resolvi então que era bem melhor que ele. E disse que levasse a cadeira, encarinhei-me com a cena dele chegando em casa com os móveis novos, a renca alegre, todos com pincéis para transformar a mobília em algo que pudessem se apropriar. Olhei a cadeira amorosa e a figura sofrida do pobre diabo, as marcas das dores na palma das mãos, uma vida de durezas e falta de oportunidades, excluído de um sistema perverso, percorrendo as margens sociais da selva urbana...

-ÊNIO ME DÁ O CARALHO DA CADEIRA DE VOLTA!


Sacripantas, se mandou com a minha cadeira...

sexta-feira, 5 de setembro de 2014

Sob medida

Foi muito difícil não abrir seu álbum de fotos, exatamente hoje. Não sei se fui tomada por uma emoção literária que tomei emprestado, essas tão conhecidas suas, que estão sempre na intermitência de estourar quando me reconheço em alguma linha, não sei se foi o tal vídeo que assisti em uma exposição, bem megalomaníaca assim, palco de algumas lembranças que começam a se fazer distantes no banco dos instantes, o qual uma mãe fazia um apelo a memória de seu filho pai marido amigo enterrado como indigente, e se me embrulhou o estômago na perspectiva palpável do esquecimento e do derradeiro abandono de um corpo tão cheio de memórias, tão sentido e atravessado, perverso no seu próprio irreconhecimento e momentos de distância de si no desvario cotidiano. Não sei o que foi, talvez tenha sido saudade, talvez. Saudade, sei lá de que, pois em mim não se configura nenhuma imagem ou momento, mas sinto ali, na base da coluna uma continuidade que me ultrapassa a carne, como um outro corpo que pesa e se arrasta junto: vem abraçado na minha cintura com um olhar terno e cansado, sempre olhando para trás. Mas abri e vi sua foto, as muitas fotos de todos os vocês que eu já não reconheço, simplesmente me escaparam e me peguei pensando se algum dia conheci qualquer um desses que vão se apresentando, desfilando baixo a vista em sorrisos e caretas que tanto me faziam rir. Faziam? Não lembro. No transportar das bagagens deixei alguma no meio do caminho, não sei se propositadamente ou na distração: essas que sempre tomaram conta de mim. Na cabeça sua vaga imagem transitando por este corpo que tanto quis te guardar, mas que você só coube na ausência: é que ele foi feito na medida de mim.

segunda-feira, 1 de setembro de 2014

E então Deus criou o mundo

É sabido que ao longo da história da humanidade ocorreram inúmeras tentativas de transcrever ditames de um tal pai celestial que tudo vê para melhor orientar a vida de suas crias. Filhos. Enfim, como tal responsabilidade foi delegada ao ser humano que possui o dom natural de emporcalhar qualquer lugar que passe (e deixa rastros de sua ruína, e almeja transpor o tempo para que não se sinta tão insignificante perante as coisas que realmente não são perecíveis: tanto em ordem matérica quanto evolutiva), não é um grande absurdo afirmar que este serzinho bípede dotado da capacidade de produzir letras e com elas criar significados e nuances de pensamentos ad eternum em seus papéizinhos e tabuletinhas, criassem uma séria e por vezes nefasta confusão sobre quais eram esses preceitos deixados pelo Fecundador universal para que nos tornássemos plenos em nossa jornada para o fim descabido, silencioso e incerto que se mantém intermitente, perseguindo-nos junto ao calcanhar como um duplo descarnado e saudoso do contato da pele com o sol. E da pele com o asfalto. E da pele com a pele (e os arroubos de arrepio quando o vento sopra devagar na nuca, anunciando a chegada do algo tão esperado, aquela cabeça que aparece na janela e te assobia a verdade do mundo e a vista turva se faz luz como bundas de vagalumes contra a copa densa das árvores em uma noite de inverno, exibindo a claridade que não precisa tomar emprestado: tenho uma tia que sempre soube, ali na borda do prato mesmo, nunca precisou mergulhar a colher até raspar o fundo para se sentir alimentada, que estas vozes eram a própria lucidez que lhe acenava, mas suas ideias foram meticulosamente desvalidadas por um diagnóstico rabiscado no papel ou algo do tipo com o dizer: ESQUIZOFRENIA).

Muito se falou de tais escritos que foram sendo produzidos, e dos falsos e verdadeiros profetas que prostravam-se contra a fúria do mundo, clamando (blasfemando), traduzindo (inventando), dando a luz (mergulhando na ignorância) multidões de fiéis necessitados desse sopro que em teoria é mais discreto e de corpo mais sutil que um padreco glutão ou um califa assanhado. Ou um hindu levitador. Ou um rabino feito todo de cachos com seu terno de lã em pleno sol da Av. Tiradentes, transpirando seu amor ao ser Divino que provavelmente estivesse com um leque observando-o do paraíso, pois se fomos feitos a sua imagem e semelhança, deve ser então acometido por calores quando o verão saárico se apresenta no mundo. Um grande leque feito de penas do grande pavão cósmico, ser mitológico de algum grupo cultural que passou e já foi e só legou suas anotaçõezinhas desse Ente Maior que se manifestou em algum momento. O grande problema de tais devaneios ancestrais para os estudiosos é que Deus se manifestou de maneira muito distinta para cada sociedade que resolveu se encerrar em um espaço, e mesmo dentro destas sociedades as pessoas divergiram em como haviam se dado estas manifestações. Há uma história célebre passada em Mântua, de um tal Ludovico de Scárnia que atirou-se da torre maior do mosteiro acreditando que o cordeiro lhe revelava o segredo de Ícaro, quando na verdade, disse Frei Jorgues, o que queria dizer Deus era que a incapacidade de voar tornava o ser humano um ser engenhoso: e por isso eram ornitólogos e não pássaros. Frei Jorgues é uma figura que merece especial destaque no estudo da palavra divina, pois, antes de brotarem das rochas testamentos esquecidos ou preceitos ignorados dentro da religião; antes dos protestos e dos franciscanos, antes da caminhada do muçulmano peregrino ou do cair do Imperador Sol, Jorgues já se perguntava sobre a incompletude dos 59.547 textos produzidos ao longo dos anos, os quais todos afirmavam serem a verdade única do Criador. Frei Jorgues também deixou suas anotações- por muito tempo ignoradas- reflexivas sobre a divindade. Diziam:

1. Deus está em todo o lugar, e se está em todo o lugar, somos todos partículas divinas que se desprenderam desse corpo maior que, solitário no céu, desmembrou-se em inúmeros mas finitos pontos de luz para que pudesse compreender o que é aquilo chamado de experiência humana: algo que reconhece ser sua invenção, mas que ainda se mostra muito misterioso para Ele

2. Para tal entendimento, percebeu também que cada qual descobre para si verdades para voltar pra casa, havendo então de se manifestar de formas distintas e irregulares, para tornar-se compreensível a quem necessita compreendê-lo (não conseguiu prever que faz parte da experiência humana desvalidar o outro como forma de submetê-lo: foi ai que Deus conheceu a mesquinhez e a maldade)

3. A necessidade de pertencimento do homem faz com que essas vozes sutis passem desapercebidas, criando a expectativa que ensurdece de encontrar seu igual, sem lembrar que o corpo (mesmo o universal) é a priori assimétrico,então nenhuma das partes poderiam se corresponder em uma forma que não transbordasse ou faltasse milímetros: há quem creia que é nesse estado de desencaixe que mora a perfeição, pois se apropria do espaço vazio como algo natural e participante, englobando em si todas as imensidões

4. A morte destina todos para o mesmo lugar: o de morrer. E em geral o mesmo funciona para outros verbos vitais

5. Quem gosta de "cídios" é a humanidade. Vá e defenda tua crença pode ser interpretado de maneiras mais gentis ( Vide que quando Frei Jorgues escreveu estas premissas, as grandes ciências que pensariam na mensagem e no receptor estavam para ser inventadas)

6. A única forma de se encontrar


Frei Jorgues, pelo que li, não terminou de escrever suas conclusões. Parece que foi acometido por uma vontade de caminhar e não mais voltou, apenas uma vez, pelo que parece, para conversar com o defundo de Ludovico, o voador. Talvez não tenha concluído, mas pelo que tenho estudado, ninguém o fez, ou não muito bem: uma vez cheguei a pensar que estamos todos na fase rascunhal desse ser Criador que deixou o lápis na boca de um cachorro celestial que está rabiscando toda a história enquanto Ele descansa embaixo do seu manto estrelado de céu. Depois ri de tal hipótese.