sexta-feira, 28 de setembro de 2012

Presença

Esperou todo o banheiro fazer vapor para começar a tirar a roupa. Entrou com cuidado no box e primeiro molhou a nuca para depois deixar a água escorrer por todo o corpo, do topo da cabeça aos pés. Todos os movimentos que fazia eram bem suaves, respeitando o rito que ali acontecia. O processo quase religioso de limpeza das partes íntimas, a maquiagem das partes a serem oferecidas à invasão alheia para substituição de sua função original para sua função simbólica -a troca do expelir para o receber.
Se seca com a mesma suavidade com que se lavou. Besunta o corpo de creme, com uma essência floral enjoativamente feminina, veste uma calcinha bonita e um vestido bonito. Ajeita os cabelos com os dedos, pinta o olho, a boca, as faces e espera, espera e espera.
A ânsia da passividade infelizmente confundiu-se com uma incômoda movimentação intestinal que por ironia do destino pôs-se a trabalhar freneticamente depois do ritual de purificação.
Fez-se bonita, mas infelizmente possuía um cu, que em questão de segundos fez com que se desfizesse e a reconectasse com o que tem de mais humano e o que fazemos de mais vergonhoso. Não havia maneiras de seu vestido esconder aquilo.

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

Tenho sido dona de um bom humor quase mal educado. Esse humor meio barato que a gente pode gastar em qualquer situação, um pouco estúpido, um pouco infantil e um tanto leve. Logo eu, que me fazia sempre tão triste, fui invadida por uma indiferença com relação ao eterno, ao como levar a vida, ao amor. Faço caretas no espelho do elevador, mando beijos pras câmeras da rua, valso sozinha na esquina da Augusta com a Paulista. Sai do canto escuro pra me colocar em baixo do poste de luz, sou o centro do meu universo, minha rotatividade é no meu umbigo, e no de mais ninguém. Faço carinho com a ponta dos dedos na minha testa, gargalho alto, perco a conta do tempo, falo coisas sem sentido nenhum e me esparramo em alguém, meio gato espichado no sol. Sorrio a boca cheia de dentes, faço barulho.
 Tenho sido dona de um bom humor quase vulgar, desses que a gente gasta em qualquer lugar, meio indiferente pra dor, pro cansaço, esse bom humor malandro, de quem se atrasa pro trabalho porque ficou sentado na calçada à toa pro acaso.
O que aconteceu foi o inverso
a liquidez tomou forma
o desmanche habitual
a desorganização das partes
a aflitiva construção
as pálpebras sonolentas
se transformaram
em questão de segundos
ou será que foram minutos?
Não sei do tempo.
Mas ali, exatamente ali
aconteceu um corpo, ou dois, ou três
ou qualquer coisa semelhante
a algo que vaguearia tímido depois
desconcertado e feliz
quase inteiro
quase organizado
quase desabrochado
depois do outono
quase gente.

Ficou nua. Sem incômodos.

domingo, 16 de setembro de 2012

Será que você me vê
te olhando ali do canto
morrendo de vontade
de te afagar
no meu peito inquieto?

terça-feira, 11 de setembro de 2012

A história da barata

Ontem eu vi uma barata. Mas diferente de minha reação costumeira, eu não manifestei meu desespero habitual, não fiquei tensa. Não era uma barata qualquer, tinha um algo de diferente, e de tão diferente, era quase bonita. Vinha em um passo diferenciado das baratas que vemos por aí, rasteiras e rápidas. Esta barata caminhava com distinta altivez, alongada, dando passos largos para atravessar o espaço. Tinha certa dignidade na forma como movimentava suas patinhas, quase com a consciência de que tinha o direito de coexistir com as outras formas de vida que se faziam presentes. Surgida não sei da onde, afinal, nunca sabemos de onde elas saem, elas simplesmente aparecem quase que em um processo de geração espontânea, a pobre barata teve o infortúnio de ter sido avistada. Clamaram por Deus, mas rogando para que um instinto homicida aflorasse em alguém para que a barata fosse eliminada.
Atônita, fiquei pensando se baratas sabem dar ré. Nunca vi uma barata andando para trás, mas naquele momento tive vontade de gritar para que o fizesse, mas esta, orgulhosa, não mudou seu curso. Manteve-se fiel em seu direito de existir, mas um outro manteve-se fiel em seu direito de fazer-se juiz do universo e em um impiedoso passo esmagou a pobre. Assisti a cena como as amantes assistiam os navios com seus soldados amados zarparem.
Derrotada, a barata foi atirada no lixo.

segunda-feira, 10 de setembro de 2012

Viver é falar de corda em casa de enforcado

O jeito, sabe-se lá, é se desculpar e desculpar quantas vezes for possível. Perdão pela existência, porque é isso. De máscara ou sem, imitando, reprimindo ou sendo espontâneo a vida se desenrola da maneira mais distante possível do que o imaginado. A gente se frustra, chora e fala besteira, uma, duas, mil besteiras pra um, pra outro, nossa, e quantas coisas são esquecidas? E as distrações? A desatenção? O stress? Ou qualquer outra coisa, sai sempre tudo diferente, quase errado. As pessoas encantam e desencantam em frações de segundos, existe a culpa que pesa, joga os ombros pra baixo ou pra cima forçando pra que possa carregá-la, tem sempre alguém na primeira esquina, ou na segunda que te aponta, não de propósito, mas por estar nesses entre meios também de erros da vida. A coisa é, pedir desculpas e seguir em frente, sempre. Eu podia morrer de remorso, mas o que me salva foi sempre a vontade de acertar, mesmo sendo esta a principal causa das coisas se atrapalharem, vontade de acertar. E sabe lá se um dia não acerto, não? É tão difícil se desvencilhar destes maniqueísmos e destas fórmulas de ser humano tão construídas e tão gastas, mas que são tão insistentes, tão impregnadas de formas e modos, há um medo de romper com isso e ser confundido com algum termo médico que foi feito em cima de números e padrões. Essa coisa tão biológica, tão fria e tão distante do universo que pulsa em cada um, e que machuca ás vezes, explode, uma explosão de força quase criadora, quase destrutiva. O jeito é assumir a taquicardia diária, e que o monstro pode ser você sim, tão cretino e sujo quanto tudo que se despreza. Tão corrompido quanto a coisa que se tenta combater pelo mesmo motivo. Não só de heróis e complexos de Joana D ´Arc se vive, não? As coisas se transformam, todos os dias, o que fazia sentido se esvazia, o macarrão fica mais impregnado de molho no dia seguinte e assim vai. Mudam. O que se lembra é totalmente duvidável, a memória tem uma questão tão afetiva. Se revivem as sensações, e nossa, geralmente são exageradas. Tenho medo de quem não exagera nas memórias. Já nem me importo se foi exatamente daquele jeito, mas se conhece as pessoas por como elas contam as coisas, acredito muito nisso. É a portinhola pro mundo particular. Ás vezes vem a dúvida existencial se aquilo tudo existiu de verdade, Senhor o mundo é inventado. E é. E mesmo assim insistimos em nos sentir culpados, cabisbaixos, frustrados e deslocados de não seguir uma cartilha que de nada se parece com o que é realmente ir vivendo, ou passeando ai pelo mundo.  Mas como a gente não se mostra do avesso, nem vomita o estômago que nem a estrela do mar pra mostrar tudo o que se tem e os complexos mecanismos que temos pra ser como somos, o jeito é pedir desculpas, todo dia, toda hora, pelo desajeito, pelas explosões, pelas palavras soltas pelo ar, pela ausência, distração, pelos medos, por ser, por não ser e por muitas outras coisas. Há uma crônica, das que muito gosto que traz um dito popular " Viver é falar de corda em casa de enforcado". Pra quem fala, atenção, pra quem escuta, paciência.
Pra quem vive, coragem.