quarta-feira, 23 de outubro de 2013

Carta ao Sr.Kappus ( com sua licença, Rilke)

Assim como você, já quis muito também, escrever. Acreditava que por meio da escrita, seria capaz de dar conta do que se faz incompreensível em mim. Sempre usei a escrita como forma de gozo/vômito (principalmente), pois sou deveras ruim para grandes falas e discursos – só expresso por fala, aquilo que de alguma forma já consegui racionalizar, e o que é um presente escorregando para o pretérito: O tempo presente sempre me foi deveras confuso, e na tentativa de explicar o amor que se fazia constante, balbuciava coisas sem sentido, como um sonho interrompido. Fico a dar voltas como o passarinho que procura o ninho, não percebendo que este caiu da árvore com o vento. Escrever, para mim, é então uma fuga da vida: com as palavras invento meu universo e vivo em paz. Ou quase, já que tudo o que escrevo é quase sempre triste.

Caro Sr. Kappus, sempre tive a pretensiosa ânsia de querer traduzir em sinais gráficos sensações que se manifestavam de forma corpórea, e acabei por dar nomes errados aos sentimentos e confundir sensações.  Cansei de chamar a melancolia de amor, o medo de resguardo e preservação, e a tristeza de insatisfação, de vontade e de sonho. Confesso que são todos termos que se dividem por uma linha tênue, e não sei se consigo realmente dissociá-los ainda, mas quando penso nos erros que venho cometendo com isso, tenho uma cômica vontade de chorar: tem que ser muito desatento, não distraído, para cometer este tipo de engano. E já que a maior parte dos nomes estavam errados, sinto dizer que não conheci o ápice das palavras, e nem a transcendência da poesia: senão apenas como um terreno ardiloso e infértil. Sr.Kappus, é dificílimo dizer/ escrever o que se sente no olho do furacão, pois as páginas correm, e as palavras são abafadas no ruído surdo do vento chacoalhando o cérebro. Neste exato momento do mundo, sofro de uma dor terrível, mas tudo o que posso dizer dela, é que gosto muito de colocar o umbigo no sol. Sr. Kappus, peça para um doente de câncer lhe dizer sobre o que tem, e nos tornaremos insensíveis, e dele obteremos algo trágico e desesperançoso. Agora, pergunte no processo de cura, e a gama de sensações se expandirá com a simplicidade e sinceridade que o assunto merece ser tratado. Se tens uma dor terrível, ou uma alegria irremediável, apenas sinta.  Esgote-a, até que tudo vire um grande deserto, e tudo escorra à margem do tempo e se desfaça como areia. É isso que somos, no fim das contas, um punhado de areia, então, para que se importar ou ser ponderado? Sinta, essa é a primeira essência para se escrever uma boa poesia.

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