sexta-feira, 20 de setembro de 2013

A história do povo que não enterra seus mortos

A impossibilidade surgiu pelo fato de que vivem no subterrâneo.  A razão é parcialmente desconhecida por grande parte dos habitantes:  sabem apenas que quando nasceram já estavam lá. Uns dizem que o mundo “´lá em cima” é exageradamente hostil; outros dizem que seus antepassados padeceram de frio e descobriram que estando no “meio” nunca mais sofreriam desse mal. Outros dizem que desde o começo dos tempos aquele povo sempre esteve ali. Por uma razão ou outra, calhou que essas pessoas desenvolveram para si um sério problema: o que fazer com os mortos?

Religiosos, seguiram a risca o que dizia um certo livro “ e haverá o dia em que todos os homens subirão aos céus, e no portão o Senhor os esperará dando-lhes ás boas vindas”. O dito defunto então teria que subir para o céu: Atônitos por estarem na terra do meio, decidiram que , aprofundando cada vez mais na terra o defunto, tornaria difícil o caminho dele para o céu. A solução então foi colocá-los para cima, onde havia sol e onde se podia ver o céu: Vendo o céu, não haveria como errar o caminho, bastava apenas seguir uma vertical até o portão. O luto então para esse povo é finalmente ir para terra de cima. Prepara-se o defunto como se prepara alguém para uma grande festa: Penduram-lhe adereços e pintam-lhe a cara. O vestem com sua melhor roupa ( há até aqueles que em vida economizam uma fortuna para a roupa do próprio velório. Alguns insistem na mortalha, pois acreditam ser esta menos pretensiosa, mas, para os mais novos,  a mortalha é algo fora de moda), arrumam seus cabelos e perfumam suas partes. Quando os defuntos estão prontos, todas as pessoas conhecidas dele vão até a casa para se despedir. É um processo que dura dias, e alguns percebem no morto uma certa pressa, então preocupam-se apenas em se despedir e desejar boa viagem. Os arrependidos se desculpam, os ofendidos perdoam e as dívidas são pagas. Os apaixonados ganham uma última noite, e alguns até mesmo se casam: Para esse povo, é proibido partir com algo mal resolvido. O da terra deve ser resolvido na terra. Passado esse período, o morto está pronto para ir para cima.


Ir para cima é outra questão: só se pode ir para cima na hora certa, ou seja, na morte. Alguns corajosos tentaram escapar antes do tempo, e voltaram loucos. O tempo de cima é muito diferente. Como para esse povo não existe dia, toda dor é prolongada assim como toda felicidade. Não há passado nem futuro, pois o que chamamos de “dia” é para eles um único. O chamam de vida. E a vida é longa, e tudo que se sente na vida se estende até o fim. Os que subiram e sofreram com essa quebra de tempo, e viram que a vida nasce e morre em instantes tão breves aqui em cima, voltaram loucos e padeceram de um mal chamado solidão. Os solitários são levados para o solicômio e passam o resto da vida suspirando, olhando a janela e pensando que enxergam a troca do sol com a lua. Nos dias de intensa depressão juram com os olhos embargados, que conseguem ver através do teto um céu cinza. "Cinza?", perguntam os doutores do solicômio."Cinza", respondem e voltam a olhar o teto. Então, para despacharam o defunto, eram obrigados a subir com uma venda. Prendem o corpo do defunto em coisas ásperas chamadas “árvores”. Estas árvores, dizem os mais sabidos desse povo, eram o veículo para o céu, pois crescem verticalmente até o dia em que o alcançam. O que conhecem realmente das árvores são apenas as raízes, que alimentam para que possa crescer. É uma verdadeira confusão quando o povo de “cima” encontra esses mortos nas árvores, com tamanha alvura e tão enfeitados. Julgam ser um milagre e os devolvem à terra; o povo do “meio” quando encontra o defunto julga ser um milagre ( uma chance do morto se redimir de algo que esqueceu), e o devolvem para cima.
A maior parte deles não espera o momento de ir para cima: pois, na vida, a espera acaba por ser demasiado longa. Das coisas só enxergam as raízes, e a sua ideia de contagem de tempo está no respirar, que só cessa no momento de mudar de lado


Nota 1 : Pela relação de tempo deste povo, não desenvolveram o uso do ponto final
Nota 2 : O que aqui "em cima" apreendemos como morte, lá é chamado de horário ou merecimento, e só tem real início em contato com a claridade solar ou lunar ( o que para eles não faz diferença, pois os que respiram não enxergam, estão vendados )
Nota 3 : Desconhecem o que é "nublado"

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