E agora me
pego com água transbordando dos olhos, algo parecido com choro mas que não o é:
é marejamento, a prática de limpeza que extirpa por todos os orifícios o que
insistia em não abrir espaço: é diferente do choro, pois é como se o choro
lidasse com algo que ainda está colado, e esse marejamento lida com o que já
descolou (se o olho fosse do avesso daria para enxergar que a ausência deu
lugar a qualquer coisa espacial vibrátil que não espera mais nada e se crê, um
pouco pretensiosa talvez, suficiente do seu grande nada: fica dobrando as
bordas do abismo para fazê-lo menor. Por fim, coloca-o no bolso e cantarola
Chopin engasgando nas notas difíceis). Os romanos tinham um hábito, e diga-se
de passagem os romanos eram um povo engraçado (não só os romanos, tinha mais
gente engraçada na história do mundo) os romanos (mas creio não ser
exclusividade), os romanos (nunca sei se romanos ou Romanos, e de quais
(R)romanos falo, pois, tinham os que eram romanos e os que foram conquistados
que talvez fossem menos romanos ((há uma escala de romanidade?)), como os da
Galícia, por exemplo) os romanos tinham uma coisinha chamada de lacrimatório, no qual marejavam ou
choravam dentro e o abandonavam nas sepulturas de quem fora dar uma volta do
lado de lá. Uma vez me deparei com um destes em um museu quando pequena, e
achei que guardavam as lágrimas para temperar comida: havia algo de boticário
naqueles vidrinhos, mas não entendia que provinham, em grande parte, não do
tempero, mas da destemperança: por achar isso, experimentei chorar sobre o
prato de comida uma vez e senti as tripas revirando da angústia que voltava pra
casa: a casa da qual havia sido expulsa. No fim, entendi que, chorando ou
marejando, as lágrimas são para o abandono: vide que despencam em um movimento
suicida e espatifam-se nas mais variadas superfícies, manchando papéis de
cartas, legitimando o infortúnio da despedida ou da desmedida: a voracidade com
que devoramos nossos afetos: ‘ai de mim’ ressoa a boca e umedece os fundilhos
de quem lê. Mas digo tudo isso porque hoje meus olhos marejam, e não choram,
marejam em uma enxurrada líquida e sem peixes sentindo descolar, descosturar,
desatar, desmanchar, desabotoar e tudo o que é inverso ao que o verbo se
propõe, todos os excessos que carrego como uma roupa fora de estação. E como
tudo o que rompe é dolorido (há melancolias tão físicas quanto um quebrar de costelas),
nesse exato momento me pego marejando o oceano interno (espero o momento de
chegarem os seres abissais) e assisto evaporar gota por gota do que na garganta
parecia tão sólido, erro comum: confundir o estado das coisas. Sinto que no meio disso tudo houve algo de
choro, mas se me escapou. Por ora marejo.
Caso alguém
escorregue em mim derramada por ai, é que navego de dentro pra fora.