quinta-feira, 30 de outubro de 2014

Aos navegantes

E agora me pego com água transbordando dos olhos, algo parecido com choro mas que não o é: é marejamento, a prática de limpeza que extirpa por todos os orifícios o que insistia em não abrir espaço: é diferente do choro, pois é como se o choro lidasse com algo que ainda está colado, e esse marejamento lida com o que já descolou (se o olho fosse do avesso daria para enxergar que a ausência deu lugar a qualquer coisa espacial vibrátil que não espera mais nada e se crê, um pouco pretensiosa talvez, suficiente do seu grande nada: fica dobrando as bordas do abismo para fazê-lo menor. Por fim, coloca-o no bolso e cantarola Chopin engasgando nas notas difíceis). Os romanos tinham um hábito, e diga-se de passagem os romanos eram um povo engraçado (não só os romanos, tinha mais gente engraçada na história do mundo) os romanos (mas creio não ser exclusividade), os romanos (nunca sei se romanos ou Romanos, e de quais (R)romanos falo, pois, tinham os que eram romanos e os que foram conquistados que talvez fossem menos romanos ((há uma escala de romanidade?)), como os da Galícia, por exemplo) os romanos tinham uma coisinha chamada  de lacrimatório, no qual marejavam ou choravam dentro e o abandonavam nas sepulturas de quem fora dar uma volta do lado de lá. Uma vez me deparei com um destes em um museu quando pequena, e achei que guardavam as lágrimas para temperar comida: havia algo de boticário naqueles vidrinhos, mas não entendia que provinham, em grande parte, não do tempero, mas da destemperança: por achar isso, experimentei chorar sobre o prato de comida uma vez e senti as tripas revirando da angústia que voltava pra casa: a casa da qual havia sido expulsa. No fim, entendi que, chorando ou marejando, as lágrimas são para o abandono: vide que despencam em um movimento suicida e espatifam-se nas mais variadas superfícies, manchando papéis de cartas, legitimando o infortúnio da despedida ou da desmedida: a voracidade com que devoramos nossos afetos: ‘ai de mim’ ressoa a boca e umedece os fundilhos de quem lê. Mas digo tudo isso porque hoje meus olhos marejam, e não choram, marejam em uma enxurrada líquida e sem peixes sentindo descolar, descosturar, desatar, desmanchar, desabotoar e tudo o que é inverso ao que o verbo se propõe, todos os excessos que carrego como uma roupa fora de estação. E como tudo o que rompe é dolorido (há melancolias tão físicas quanto um quebrar de costelas), nesse exato momento me pego marejando o oceano interno (espero o momento de chegarem os seres abissais) e assisto evaporar gota por gota do que na garganta parecia tão sólido, erro comum: confundir o estado das coisas.  Sinto que no meio disso tudo houve algo de choro, mas se me escapou. Por ora marejo.



Caso alguém escorregue em mim derramada por ai, é que navego de dentro pra fora.

sexta-feira, 17 de outubro de 2014

O teatro da memória

Tenho uma tia, muito querida, que adorava ensinar essas pequenas/imensas coisas da vida. Ensinou até os dias que pôde: não que a morte a tenha levado de braços dados para qualquer lugar inférnico, mas acho que em dado momento da vida, houve o ensejo de parar e não fazer mais nada além de ensinar a si mesma: são esses equívocos da memória.
Detalhista,talvez fosse a palavra maior para descrever a tia Norma: detalhista. Enxergava além da miopia cotidiana e possuía, sabe? Alguma lente mágica que captava coisinhas desapercebidas nos outros e até mesmo nos espaços: a falha do dente, a migalha de pão, o esmalte comido na ponta da unha. Nada assim, metafísico: era na gente mesmo, os pormenores. E repetia com a sabedoria de um gato quando olha a janela que eram nessas falhas que se podia captar a falta de caráter (sempre desconfiei do que ela realmente queria dizer com isso). Dizia sempre, que tínhamos que prever as olhadas furtivas e estarmos sempre preparados para surpreender, para criar assim certa graça para quem olha. Levantava-se majestosa e na meia volta que dava com o corpo, dava para espiar um band-aid colado no cotovelo, cheio de bichinhos. Logo nosso olhar se encontrava de volta e me presenteava com uma piscadela cúmplice, como uma criança travessa que esconde o doce dentro do armário. As unhas, sempre cor de areia, mas em uma, especialmente, uma listra escarlate. Na blusa, o ponto ápice de sua aparência, um melancólico botão costurado, único na imensidão do tecido que lhe descia até os quadris. Mas o melhor para mim, e meu estômago se revirava para tal momento, era o tal do brilho que ela passava no colo. Esparramava glitter, purpurina, ou sei lá que era aquilo, e arrematava com uma gota de perfume. Retirava-se cintilante pela porta deixando aquele rastro de luz artificial pelo caminho, e eu, pequena, me encolhia na poltrona da sala da minha vó, ansiosa para o momento do retorno. Horas sentadinha para o momento em que visse girar a maçaneta, e uma tia Norma cansada da noite apareceria risonha arrancando a blusa no meio da sala, os seios já flácidos derrubando o remanescente de brilho no chão: e caíam como qualquer coisa mágica, girando em órbita no mamilo que resistia cansado à gravidade, pousavam leves no chão empoeirado que ela havia esquecido de varrer. Era um espetáculo.

Explanação

E é porque havia muita gente entre eu e o outro que a espinha dorsal enrijecia como que anunciando a chegada do inverno; e é porque haviam murmúrios escapando pelas rachaduras da sala de estar para o apartamento vizinho - que se punham atentos às inundações secreciosas: escapando de sistemas que convocam o corpo em seu todo - que se fez um abrigo embaixo dos lençóis onde a claridade bate à porta da trama de algodão e se vê obrigada a dar de ombros, a iluminar qualquer esconderijo menos banal como um canto, onde as arestas se beijam em suas perfeitas proporções; e é porque as curtas distâncias entre as casas, ruas, bairros e cidades reajustam-se em medidas incompreensíveis as quais escadas lhe empurram pra cima baixo seu calcanhar sujo: negando-se a amparar o peso, que termina à margem de um salto no escuro: um mergulho em caixas de areia. E é por isso que tosse com a garganta arranhada das mil vozes-espinhos que escalam os tubos digestivos-respiratórios ansiosas para aflorar na prometida primavera, cuspindo pétalas púrpuras de flores que já murcham pela espera; e é por isso que penteia-se na esperança de que fio a fio que se solta, vá desnudando a cabeça branca da cascata que esconde o rosto que já mostra os sinais dos primeiros vincos, consequência da frágil construção de seu lirismo, uma docilidade empalagosa, incapaz de lidar com a força do mundo: cavoca-lhe o ventre com a delicadeza de uma peste que espera o momento certo de estourar desavergonhada de sua mórbida obra; e é porque havia muita gente entre o outro e eu que distorceu as imagens do encontro em seu jardim de espelhos.