sexta-feira, 31 de maio de 2013

Há de se tomar cuidado quando pensamos que temos muito a dizer. Somos atualizações do mundo, que se utiliza do nosso corpo como meio de passagem para poder existir. Estamos todos conectados a um todo que não sabemos o nome.

Preencho o vazio com açúcar - Fragmentos de memória

"Jogue o lixo no lixo, não jogue nada no chão
Vamos limpar a escola, cantando esta canção
papel de bala, goma de mascar, papel amassado,
não jogue nada no chão"

Essa era a música que o Tio Luís, meu primeiro professor de música, cantava na hora do lanche. Ele era o cara mais legal da escola. Era moreno, e tinha um cabelo todo enroladão. Era manso de tudo. Está certo que não foi ele quem me ensinou a tocar flauta, mas com suas músicas aprendi a não jogar o lixo no chão e a escovar os dentes direito. As aulas de música aconteciam toda sexta-feira, no mesmo dia do dia do brinquedo, coisa esta que eu sempre esquecia de levar. Mas a tristeza da ausência do meu bichinho era rapidamente substituída pela lembrança de que haveria aula com o tio Luís.
Naquela época ainda gostava da escola. Adorava as vezes que por algum erro de percurso de meus pais, era obrigada a passar a tarde toda lá. Devia adorar também porque não era algo que acontecia sempre. Foi na tenra idade dos 4 para os 5 anos que aprendi a ler, então, ficando na escola, era a chance de me aprimorar. Claro, junto da professora. Carregava comigo uma caixinha de livros que ganhei de uma vizinha. Era uma caixinha com livros de história da Disney. Quando a abria, tocava uma musiquinha bem melancólica para uma caixa de criança, era algo parecido com tãnãnãnã tã tãnãnãñañañaña tãnãnãnã tãnã, e ia se repetindo. A professora ficava junto para me ensinar a ler o 'p' mudo e o'h'. Mal sabia que exatamente ali descobria minha perdição: desde então, o livro se tornou inseparável de mim.
Foi nesse tempo que amarguei minha primeira decepção. Havia uma música, acho que da Dalva de Oliveira, que cantava a estrela Dalva, música que cantei por anos muitos trechos errados, mas lembro muito bem da parte da "estrela Dalva, no céu desponta, e as pastorinhas  no céu a voar". Eis que, graças a esse trecho, tive uma vontade súbita e fervorosa de ser a estrela Dalva, para ficar no céu junto das pastorinhas. Passava muito tempo planejando meios de voar para alcançar o céu. Me tacava de cima da cama, dos degraus da escada, mas me ensinaram muito bem a ficar longe das janelas, o que encerrou minhas possibilidades de vôo. Na verdade, me ensinaram muito bem muitas coisas, o que ajudou com que daquele momento em diante parasse de gostar de muitas coisas, inclusive a escola.
Fiquei cansada de ser ensinada.

terça-feira, 28 de maio de 2013

Amorangústia

Esse amorangústia oferece-me suas mãos vazias enquanto brinca no meu corpo de cavocar o peito com uma colher. Engole todos os pedacinhos de mim na sua fome de afeto. Foi consumindo tudo e ficou com um estômago repleto de mim, enquanto eu, fiquei com a ausência esparramada na cama, na espera de algo que preenchesse as vísceras murchas que o amorangústia esvaziou.

quinta-feira, 23 de maio de 2013

Anotações sobre o acalanto

Confesso que hoje amanheci tristonha e até chorei no caminho para ir aonde deveria ir, dando passo por passo como quem caminha para a morte. Há tempos que sinto esta angústia, esse nó na garganta, desses bem apertados, daqueles que te causam a ligeira impressão de que existe um corpo estranho que se perdeu e resolveu se instalar em um lugar que não é dele. Caminhava com esse nó e um acesso de tosse. Ia assim, em uma confusão que misturava chorar, engasgar, soluçar e tossir. Era quase engraçado, se não fosse minha tristeza.
Na verdade, estar triste é uma constância em mim. Já quase não me incomoda, acostumei-me com sua presença da mesma forma que o corpo se acostuma com o frio depois de um bom tempo de tremedeira. O que não significa que haja em mim algum tipo de desamor, ou algum flerte com a morte. É apenas aflição de tudo aquilo que sou incapaz de acessar. Tenho, claro, alguns momentos de riso sincero, os quais consigo trocar a água da minha tigela por um punhado de açúcar. O que me impulsiona a escrever neste momento, é esse momento de troca, pois, depois da manhã aflitiva, meu peito inflou-se de uma doçura ímpar, e digo, não por uma conquista minha, e sim, de uma vontade real de compartilhar da felicidade de outro. Aquela coisa da água de lastro. A generosidade de quem dividiu comigo um afeto e uma alegria tão sincera, criou em instantes dentro de mim um novo ambiente. A pequenice que sinto de mim, agora, quase não me incomoda.
Se sou um aquário, algo de mim, de alguma forma, ainda se conecta com o mar. Mesmo minúscula e irremediavelmente vulgar, contenho vida dentro de mim.

segunda-feira, 20 de maio de 2013

Anotação ligeira

é por meio da escrita que tento criar um corpo para mim, algo mais palpável que essa massa inconsistente que insisto em manter. Mas quando deixo que estas palavras saiam de mim para dar forma, começo a escapar por entre os espaços e os respiros do texto - não há forma que me suporte.

domingo, 19 de maio de 2013

Notas sobre um anônimo

Insetos são realmente uma grande questão para mim. Não sei realmente o que pensar sobre o assunto, há um entendimento dentro de mim de que não se deve interferir em alguns sistemas que existem na natureza, mas aquele bzzzzzzz me põe histérica. Mas juro, tenho tentado. Começando pela percepção de que talvez, não se deva matá-los. E toda vez que tento internalizar estas questões, me aparece uma barata. Sempre.

Comecei pelas pequenas coisas: Tirava lagartas e taturanas do meio da passagem para que não fossem pisadas. Tirava bichinhos que se afogavam na piscina, afastava com pano as mariposas e assim por diante.
Não entendo qual a relação de insetos com água. Ou entendo, até hoje deito na beira da piscina e mergulho só a cabeça, até que alguém me chame, ou até que eu não consiga não respirar. Talvez eles gostem de molhar a cabecinha deles e caiam sem querer. Eu mesma já caí muitas vezes quando pequena e tiveram que me tirar. Afinal, havia algo em comum entre nós. Vinha com a rede e blupt, insetos para fora.
Um dia estava deitada na beira da piscina, com aquele solzinho de fim de tarde no umbigo quando ouvi algo bater na água. Era o bzzzzzzz mais alto que já ouvira na vida, mas tudo bem. Me preparei para pegar a rede, quando olhei o que havia caído. Era enorme, e aquela imensidão de várias patas gelou minha espinha, minha boca e meu cérebro por alguns minutos. Não sei que bicho que era, só sei que era grande e negro e abria e fechava suas asas de renda sem parar - mas não era desespero, era algo mais sutil, um pedido. É, quase um pedido de ajuda, digno, ponderado, bicho. Mas por algum motivo não pude. Tive medo de retirá-lo da água e de repente não sabia nem aonde estava a redinha, só conseguia observar. E as asas de renda continuavam sua dança mórbida na água. Tentei conversar com ele e explicar minha situação. Conversava com um tom aguado na voz, dando direções, explicando como podia sair. Empurrava a água de leve para direcioná-lo para perto da borda, ele só se deixava ir. Não estava entendendo. Comecei a falar mais alto, ouvia sons esganiçados saindo da minha boca, queria que ele entendesse o que lhe aconteceria se ele não fizesse força, pedia desculpas pelo meu medo. Meu corpo fazia sombra na água onde ele estava a abrir suas asas. Não sei quanto tempo durou o processo todo, há uma espécie de suspensão do universo nesses momentos de escolha, sabe, quando temos que escolher se seguramos na borda ou se desmanchamos na água. Sentei com uma vontade imensa de afundar a cabeça na piscina, aquele mal estar que não consegue escapar do corpo, fica preso na gargante, no quase sair que nunca acontece.
Do mesmo jeito que surgiu, se foi. Como se algum sinal tivesse tocado, algum sinal que eu não acesso, ele parou de se movimentar. Não foi gradual, nem compassado, foi com uma obediência de soldado- só parou, as asas fechadas, as patinhas, o corpo exageradamente negro. Assisti ao longo processo da morte, o corpo dele afundando. Não tinha mais sol, havia um defuntinho no fundo da piscina que seria sugado pelo ralo até se desmanchar e havia eu, sozinha, impotente e medrosa testemunhando o espetáculo promovido pela morte: engasgado e silencioso.

A rede da piscina estava na beira oposta, apoiada em um vaso perto de um pinheiro.

segunda-feira, 13 de maio de 2013

Faço o que faço para me livrar da ânsia

E é isso: Não faço literatura, não faço arte, não faço nada. Não sei articular nem dar forma para as coisas, e há muito que tento com um desejo sincero transformar essa ânsia em algo palpável, que tento dividir para ver se há algo, ou alguém que de alguma forma se identifique com esse monte palavras e me diga que é natural. Mas o que consigo colocar para fora é vômito, é resultado dessa náusea, dessa vontade de ser alguma coisa que não apenas eu - essa ideia me é insuportável, pois, dar-se conta de si no mundo é dar-se conta do que te pertence e do que não está ao seu alcance, das limitações e das insuficiências, e naquele afã de querer se exceder carregamos bagagens que não são nossas, e a ilusória sensação de que não cabemos nos espaços, quando na verdade sobramos. Inventamos o tempo inteiro qualquer coisa, só para preencher o tempo, quando, o que somos, é tão mais sutil e mais discreto.
Não sou nada, e parei de ter a pretensão de querer ser algo além do que posso ser. Se escrevo, se desenho, se danço, é porque necessito - nada disso me levará para lugar nenhum. É esse regurgito que vem do fundo do estômago, essa dor tão presente que se faz corpórea, ganha peso e necessita sair.
Faço o que faço para me livrar da ânsia, desse mal estar constante de tentar me entender no mundo.

sexta-feira, 10 de maio de 2013

Meu maior erro foi ter aprendido a ler

Meu maior erro foi ter aprendido a ler. Creio, que com a melhor das intenções do mundo, meus pais acharam essencial para minha educação que isso acontecesse, e no meio de sua ingenuidade ainda me ragalavam livros: 1,2,3,15 livros para descobrir o mundo. Mal sabiam que com isso, o que faziam era me condenar a estar para sempre no quase - quase feliz, quase plena, quase inteira - pois quando entrei em contato com essas descobertas, com essas possibilidades de mundo(s) e de sermos maiores, me dei conta de minha pequenice e minha insuficiência: Tanta coisa a se ver e se fazer, e tão pouco tempo, tão pouco corpo, tão pouco tudo.
        Sinto que estou dentro de um tubo de infinitas curvas, engatinhando. O único que posso fazer é seguir adiante, pois já não sei por onde entrei,  fecharam a passagem. Se fico parada sufoco. Só posso seguir em frente, tateando no escuro até que o túnel acabe. Não há jeito: Depois que entrou não há volta.



Nunca terei um copo cheio.