segunda-feira, 26 de maio de 2014

Das coisas que não se apagam

No fundo da tela a tal da mensagem:
minúscula em um celular
falava de um tal de amor imenso
nem pra ser em papel de carta
pra deixar amarelar

a mensagem piscava
na luz infernal
rolando debaixo do meu dedo
essa tal de tela touch:
um toque e tudo se desmancha

E não haverá durex para remendos
nem papel picado no lixo
é só um botão, e não haverá rastros
a tecnologia conseguiu inventar o tal do amor etéreo:
a virtualidade deixou as palavras desnudas de corpos.

Posso deixar então, por ora
o amor amado
suspenso na memória do aparelho
há coisas por dentro de mim
que precisam ser arquivadas

Ah benzinho, de todas as falas poupadas
de todos os berros contidos
de todo o silêncio trocado
essa mensagenzinha nanica
era a minha favorita.

sexta-feira, 23 de maio de 2014

O ser apaixonado

E então ela quis urgentemente, ardentemente esquecer. Rogou em claro e bom som, para si e para o mundo, que queria que seus neurônios oxidassem e que, pouco a pouco, seus grandes monumentos perdidos no labirinto da memória fossem sucumbindo finalmente depois de tamanhas intempéries, as quais até então resistiam frágeis e desfigurados da acidez bruta dos desencontros da vida. Erigidos como marcos de velhas conquistas de velhas guerras travadas, viu a desilusão corroer-lhe o cérebro o peito e o estômago. Era um corpo só de história, mas um corpo sem futuro. Que derrubem, pedaço por pedaço e que a relva se apodere, mostrando que, simplesmente não importa: traz à tona o perecível, da carne, da ideia, da memória. O que se ergue e mantém-se de pé não nos cabe construir. Essas coisas, que vão além de nossas mãos, além de nossa vontade e escolha, nos observam silenciosas, passar, simplesmente passar. E que importa, esse coração tão manso? Já não cabe mais em si e já não bombeia os disparos frenéticos ao vislumbrar o tal do ser amado, este que, no final das contas não existe. Amou o amor, simplesmente e puramente, amava o fato de amar e não deixou que ninguém usurpasse este lugar para que fosse ocupado por um ente real, e passageiro.

-Mal dos românticos

Entregou-se então na tentativa de esquecer, largou-se de si, do cuidado com o corpo, da consciência, do apego e mergulhou fundo na tenra melancolia de não mais querer ser, uma tentativa de existência ínfima e vulgarmente despretensiosa, muda e surda dos movimentos internos, livre de reflexão, significação ou qualquer tentativa de entendimento que não fosse essa: a de ser passagem, breve, desoladamente, desesperadoramente breve. Não havia muito jeito: como dissuadir um ser romântico de seu propósito? Como descontaminar o que parece candidamente limpo? Não há volta, nem dor, nem reparos: não há mais nada. Nada que não possa ser derrubado, desfeito, desajustado. Fenece, principalmente os de coração manso atormentados pela febre de um estado de espírito doentio: o amoroso. O amor exige certo estado psicótico, certa cisão, esse desmanche do corpo, se diluí desfronteiriço esparramado no limite do amargo.
Amargor - na ponta da língua, na boca do estômago, no olho do cú: não poupa nenhum pedaço. Caminhamos perturbados largando falsos segredos em velhas gavetas: elas resistirão, com milhões de confissões ardorosas, papéis de cartas manchados e encardidos: ilegíveis com merda de algum inseto insensível. Cartas de amor são comida de traça. enchem o estômago de invariáveis angústias, defecam felizes as mazelas das gentes. Já ela na sua tentativa de esquecimento enche a boca de terra no desespero de estourar em flor, mas cá entre nós, sabemos que disso só vai nascer matinho: até a flor irrompe sozinha, independente e cheia de si. Ela não, a boca alargada como um vaso.

- O que aconteceu com aquela moça?
- Deve ser maluca, e só.

Até quis responder que aquele estado provinha de um...havia esquecido o quê.