domingo, 8 de dezembro de 2013

Para Toulouse

Aldana acordou e deu de cara com seu gato deitado na poltrona de seu quarto, o que era algo esquisito, já que Toulouse gostava de dormir no armário do canto esquerdo da cozinha. Quando o gato percebeu a surpresa de Aldana, miou algo com "não queria que fosse solitária", deu dois suspiros e depois morreu: os olhos vidrados e o seu corpo enrijecido, com a sombra de seu último ronronar. Ali, bem na frente dela, Toulouse havia batido as botas, ido dessa para melhor, estaria a sete palmos, e todos os outros nomes que damos para a morte. Assim: de forma instantânea e natural. Aldana sabia que seu gato já não estava lá essas coisas: ele babava, tinha siricuticos de gato velho, fazia xixi no seu potinho de água. Então, para poupá-lo, já havia marcado o dia em que iria sacrificá-lo. Claro que teve a delicadeza de não contar nada para ele, mas fez dos últimos dias de Toulouse os melhores de sua vida de gato, regados a atum e leite. Mas 2 dias antes da data prevista, Toulouse decidiu morrer de morte morrida. E como Aldana poderia evitar o choque de descobrir que as coisas morrem naturalmente? Antes de Toulouse, ela já havia sacrificado 3 gatos, 1 cachorro e 2 hamsters, pois achou que fosse a hora. Descobrir que assim como alguns de nós, há outras coisas que morrem naturalmente deu-lhe um frio na barriga. Não estava habituada com a ideia do morrer das coisas do mundo, e sim com o matar: sacrificar, dedetizar, pisar, amassar, arrancar, afogar, estapear. Por exemplo: insetos não foram feitos para morrer, e sim para serem mortos. Nunca havia imaginado que morriam independente de nossa vontade. Pensou em quantos defuntos não haveriam neste exato momento do mundo, tombando de lado em um carpete fofo, na grama ou no asfalto, agonizantes em sua mortalidade. Será que agonizam mesmo? Nunca encontrei esses corpinhos pelo caminho

- A natureza é mais discreta.

Pensou em seu gato que morreu sem alarde nenhum: não chorou e nem fez testamento. Não lamentou a falta do grande amor (coitado, era castrado), não clamou por Deus, não quis ver os familiares. Só precisou de uma companhia rápida e ai morreu. Lembrou-se então dos elefantes: vira em algum lugar, que quando estavam para morrer, se retiravam do grupo e se dirigiam para o cemitérios, sozinhos. Pobre Toulouse, deve ter achado que era meio elefante. Aldana espichou-se na cama e deu uma rápida olhada no espelho: Pálida feito a morte.
Levantou-se finalmente para recolher o corpo de seu gato, ainda quentinho. Viu que do corpinho de Toulouse, algumas pulgas abandonavam o barco. Vivia dizendo a Toulouse para evitar os passeios noturnos por conta dessas coisas, e a lembrança de seus monólogos com o gato embargou-lhe os olhos de irremediável saudade. Até pensou em amassar as pulgas, mas decidiu por deixá-las viver sua pulguice até o limite, e que morressem a hora que lhes desse na telha.

quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Anotação

Não entende em qual tempo se insere. Sofre apenas por ver aquilo que se desmancha e assiste ir se esvaindo. Mas é natural: o tempo não solidifica nada, só faz do mundo espuma. É garrancho de impressões passageiras. E agarra-se no cordão umbilical do mundo, pois se crê ainda feto. Crê não poder se alimentar e mal se apercebe do corpo crescido que já não cabe nas velhas camas. A incômoda pele esticando e rasgando sobre os ossos. Mas não entende do tempo, apenas quando este já é desastre: quando as rachaduras já derrubaram a casa. Abre as torneiras e deixa que a água escorra, quer morrer de inundação. Se afogar em si, na lucidez que brota dos poros e nada pelas veias: escorre por buracos e frestas do corpo. Estanca lucidez, não te escapes: reverbera por entre versos confusos que nascem de ecos, e castiga a folha com arranhões de ponta seca , seca feito o colo de quem escreve. É um sem sentido constante, a tentativa de engarrafar o tempo no vidro estilhaçado. O que é matéria rompe, e o que não é também. Não há resistência, nem vontade para.
Só não entende.

terça-feira, 26 de novembro de 2013

O taxista

Fiquei um tempo contemplando seus olhos. Eram azulados: não sei se naturalmente azulados, ou se era catarata, pois havia certa desatenção em sua mirada que me lembrava cegueira. Ora! Que irresponsabilidade entrar dentro de um carro com alguém que não enxerga conduzindo. Tinha que chegar em casa! Havia gente me esperando. Sempre me desesperei com a ideia de esperar alguém que nunca chega. Imagine a tragédia: Moça morre em acidente de carro conduzido por um motorista cego.Cego! Mas quando percebi, já estava dentro dele. Como sou muito dada à devaneios, não é incomum que meu corpo haja por conta própria alguma vezes. Entrei no carro com o motorista cego, sentei no banco de passageiros, e só me dei conta quando a voz dele rompeu bruscamente o silêncio:

-Para onde, moça?

Ai paizinho. Não sei para onde. Deveria ir para casa, mas não quero ir para lá. Quero ir longe, longe! Bem longe, não, não quero ir para casa. Motorista, queria ir para Romênia, você dirige até a Romênia, hein? Sabe, sempre quis ir para lá, gosto do som do idioma e da música, é gosto muito. Deve ser uma beleza, Romênia, você sabe chegar motorista, hein? Sabe? Como saberia, é cego! Não, é melhor pensar que não é, imagine a loucura, meu Deus, andar no táxi com alguém cego dirigindo, não. Tenho que chegar em casa, devo, devo chegar em casa, afinal, me esperam. Como digo para onde vou, se onde vou não é onde quero chegar, preciso ir para casa.

-Motorista, me deixe na R. Lyotard Labé.

E ele lá sabe onde é a essa rua? Coitado, não deve enxergar um palmo a frente no nariz. Cego, ceguinho feito minhoca, deve achar que o mundo é um grande tubo de terra.
E como se o motorista ouvisse pensamentos, logo me respondeu:

-Olhe moça, te levo onde quiser, conheço tudinho. Melhor que meu corpo! Já nem distingo na verdade, eu da rua.

Assustei-me confesso, ao ouvir tal voz vinda de um corpo tão retorcido. E ele prosseguiu:

-Moça, conheço  tudinho dessas rua. Muito tempo de casa, poderia andar nelas tudo sem enxergar nadinha (ai, frio na espinha, era cego ou não?), sei de cor cada calçada e travessa. E os falecido tudo, eu conheci. E tanto faz os que nasceram dispois: eles tem tudo as mesma cara dos falecido, nasceram pra substituir. Sabe né moça, todo mundo tem seu lugarzinho, eu, sou de passagem, sou trânsito, mas lembro bem das coisa tudo. Quem roda muito por ai, vê de um tudo, vive de memória. Por isso digo, aonde a fia quiser ir, eu levo. Conheço tudo as rua - postes, árvores, os gato miando. Sei quando mudam de sentido. Tenho tudo gravado ó (e batia na cabeça com pancadas razoavelmente fortes). Meus óio guarda tudo. Tá vendo essas ruga? Cada ruga é a linha de um mapa em mim. De cada lugar que eu passei, pode reparar! Elas cresce, encurta, cruza, faz curva. E os dente que falta é os buraco das rua (e soltou uma estrondosa risada). Ai, é o tempo moça, chega pras cidade, chega pra gente tudo, envelhecemo tudo junto. Mas conheço tudinho, mesmo assim. Não precisaria enxergar nada, farejo os caminho. Eu sei das coisas: se a arte é uma forma de estar no mundo, minha arte é conduzir. Nem pego ônibus, me agarra uma raiva. Mas me diga, onde quer ir mesmo?

A esta altura, já havia me perdido no mapa-ruga, procurando um destino para mim. Baixos os olhos (cegos?) do motorista, procurei pela minha rua. Procurei a Romênia, procurei a puta que pariu. Se sabe das coisas, não teria que me perguntar onde quero ir!

- É moça, conheço mais da rua que da gente.

Pronto. Dois solitários: uma perdida e um cego enfiados no mesmo táxi. E ele não desistia de falar, nunca. Já estávamos perto de casa. Vinha falando de como as coisas eram antes de elas se tornarem o que são. Nem tudo foi como é, há muito tempo costumavam ser diferentes. Eu fiquei diferente. Houve tempos em que quis voltar para casa, ai passou a vontade.Sou passageira, ouviu? Passageira. O velho não para de falar. Aposto que mora no táxi. Nunca dorme, fica pescando almas perdidas para atazanar com seus pensamentos. Sabedoria de bolso. De taxímetro. Falando em taxímetro, nem olhei em quanto já está essa corrida. Os gregos, quando alguém morria, queimavam o corpo do moribundo com duas moedas em cima dos olhos fechados: era para pagar o barqueiro, para quando o morto tivesse que fazer a travessia para a terra dos defuntos. O taxímetro é a cota, e o motorista meu barqueiro. Com a diferença que eu não estou morta, apesar de muitas vezes me assemelhar com um desmaio.

-Motorista, eu não morri!
-Nem eu, moça.

Enfim, algo em comum. Segui quieta os minutos restantes, até chegar em casa. O motorista sabia das coisas. Na verdade, acho que não era cego não, ele me enganou. Velho tonto. Enrolei um pouco para descer do carro, quando ele me disse:

- Moça, quando precisar, eu sei ir para qualquer lugar. Dessas rua do mundo, conheço tudo. Tá tudo gravado na palma da mão.

E foi-se. Senti um breve amargo na boca. Deixou comigo um cartão com seu número, para quando eu decidisse ir para algum lugar. Saiu com o carro bambeando pela rua, como se enxergasse por meio do contato da roda com o asfalto, dirigia no tato. Cegos não deviam ter carteira, deviam?
Antes de entrar em casa, esqueci que não havia perguntado como se chegava na Romênia. Ele devia saber, não duvidaria se fosse romeno, me diria animado "Sou romeno!", e me levaria para lá com saudade de casa. Casa, era um largado no mundo. Eu tenho casa, e não quero voltar. Mas há o número, posso ligar em breve, agora! Quando decidir para onde quero ir, ligo rápido e vou, não volto. É só eu decidir. Só eu decidir.

(não consegui ligar, ainda)


segunda-feira, 18 de novembro de 2013

miudezas

E gosto de você, até quando fecho os olhos
todos os dias
e todas as horas
preenchendo, minuto por minuto
de candura e dor
de contrários avessos
de mudez crônica
de imenso e incorrigível
indelicado e mal-educado
amor.

(

engulo seco. os olhos embargam - não sei se de sede, fome ou falta.
o corpo se esquece nesses momentos e tudo desatina em sincero incômodo
e tudo se confunde enquanto gesticulo frases mal resolvidas: grunho em mímica
pois não tenho coragem de romper o silêncio. outro dia me larguei no metrô
queria ser conduzida por caminhos retilíneos. Espiava o mundo passar rápido
espiava o livro da mulher ao lado. queria comer as páginas todas, meu estômago
ele doía de fome, queria comer as páginas e me preencher de ecos alheios
de um amor fictício. que passa rápido. "Pula do trem". "Pula no trem". Deita
deita na linha e espera. morreatropeladaeexplodeopeitooarrastandonochão.
Para tudo virar a mesma coisa. os pedaços teriam gosto de choro. daria para raspar
raspar tudo com uma colher e colocar em um pote: aflição em conserva
era só choro na vida, essa daí: o bom sempre me escorre
feito suor no corpo em dia de sol. brota dos poros e ensaia a queda
escapa na risada. por isso não sou muito de sorrisos. nem de risadas
nem de nada. não sou de nada
tirando essa troglodice dita amor que insiste em me rasgar as paredes do estômago

                                                                                                                              )

quarta-feira, 23 de outubro de 2013

Carta ao Sr.Kappus ( com sua licença, Rilke)

Assim como você, já quis muito também, escrever. Acreditava que por meio da escrita, seria capaz de dar conta do que se faz incompreensível em mim. Sempre usei a escrita como forma de gozo/vômito (principalmente), pois sou deveras ruim para grandes falas e discursos – só expresso por fala, aquilo que de alguma forma já consegui racionalizar, e o que é um presente escorregando para o pretérito: O tempo presente sempre me foi deveras confuso, e na tentativa de explicar o amor que se fazia constante, balbuciava coisas sem sentido, como um sonho interrompido. Fico a dar voltas como o passarinho que procura o ninho, não percebendo que este caiu da árvore com o vento. Escrever, para mim, é então uma fuga da vida: com as palavras invento meu universo e vivo em paz. Ou quase, já que tudo o que escrevo é quase sempre triste.

Caro Sr. Kappus, sempre tive a pretensiosa ânsia de querer traduzir em sinais gráficos sensações que se manifestavam de forma corpórea, e acabei por dar nomes errados aos sentimentos e confundir sensações.  Cansei de chamar a melancolia de amor, o medo de resguardo e preservação, e a tristeza de insatisfação, de vontade e de sonho. Confesso que são todos termos que se dividem por uma linha tênue, e não sei se consigo realmente dissociá-los ainda, mas quando penso nos erros que venho cometendo com isso, tenho uma cômica vontade de chorar: tem que ser muito desatento, não distraído, para cometer este tipo de engano. E já que a maior parte dos nomes estavam errados, sinto dizer que não conheci o ápice das palavras, e nem a transcendência da poesia: senão apenas como um terreno ardiloso e infértil. Sr.Kappus, é dificílimo dizer/ escrever o que se sente no olho do furacão, pois as páginas correm, e as palavras são abafadas no ruído surdo do vento chacoalhando o cérebro. Neste exato momento do mundo, sofro de uma dor terrível, mas tudo o que posso dizer dela, é que gosto muito de colocar o umbigo no sol. Sr. Kappus, peça para um doente de câncer lhe dizer sobre o que tem, e nos tornaremos insensíveis, e dele obteremos algo trágico e desesperançoso. Agora, pergunte no processo de cura, e a gama de sensações se expandirá com a simplicidade e sinceridade que o assunto merece ser tratado. Se tens uma dor terrível, ou uma alegria irremediável, apenas sinta.  Esgote-a, até que tudo vire um grande deserto, e tudo escorra à margem do tempo e se desfaça como areia. É isso que somos, no fim das contas, um punhado de areia, então, para que se importar ou ser ponderado? Sinta, essa é a primeira essência para se escrever uma boa poesia.

segunda-feira, 14 de outubro de 2013

A história de nós dois

A vida se move por misteriosos acasos, e, não diferindo disto, foi por uma série de acasos que eles se encontraram. Ela saiu muito mais tarde da faculdade, e ele saiu mais cedo do trabalho carregando uma caixa. Por acaso, ele pegou o mesmo vagão em que ela estava, e não tão por acaso, ele se sentou ao lado dela. Por acaso ela o reconheceu de algum lugar que não lembrava, e não tão por acaso começou a conversar com ele, por conta da bendita caixa, pois ela é deveras curiosa. Gostavam de música, de formas bem diferentes, mas gostavam. Desceram na mesma estação, subiram a mesma rua, e descobriam que, por acaso, eram vizinhos. Um dia se encontraram, e a partir deste dia, adquiriram uma péssima mania de errar absolutamente todos os lugares e horários de coisas que combinavam de fazer, o que, por acaso, os obrigava a conversar. Os dias foram ficando claros, e um dia, assim, ela acordou com um quentinho no peito e um coração saudoso. Era o amor tomando conta do corpo. E vieram tempos de uma sucessão de erros, mas ainda assim, por acaso, se encontravam no meio do caminho. E apesar dos erros, já que a vida é meio errada mesmo, decidiram que enfim, poderiam se apaixonar. E se apaixonaram, nos tempos de clareza e nos tempos turvos. Descobriram a capacidade das palavras como acalanto e como arma. Cuidaram-se com o cuidado que se tem com o próprio corpo, como a extensão de um orgão vital. As dores foram extremamente doídas e a felicidade foi incabida. E transbordaram em vários momentos e houve também o vazio, como a criança que busca a mãe que se esconde por trás do pano, mas que depois volta a aparecer. Eles sempre apareciam, no final das contas, e o acaso foi substituído pela vontade. Casariam e teriam um Dálmata, era o combinado entre eles ( o cachorro poderia ser substituído por um gato, que se chamaria espetini ). Mas a vida desencontra ás vezes, e foram surgindo outras vontades. Mas há de se estar atento: desencontra do fato, e não do amor. Esse nunca faltou. Nem falta. Ora, quem poderia dizer que se perdeu algo no meio caminho? Só um insensível que não assistiu nas pequenas sutilezas cotidianas, os pequenos afetos deixados enquanto caminhavam. Estamos vivos contrariando uma estatística, e quem poderia dizer que não foi um milagre, além de tudo, terem se encontrado? Porque foi um encontro, feliz. Que importa o desfecho?

Esta é uma história feliz.

Falando sobre velhos hábitos

Falarei sobre um terrível hábito, e pouco me importa agora, caro leitor, se escrevo bem esse tipo de coisa, já que não sei se escrevo bem, na verdade, sobre qualquer coisa. É uma carta aberta, mais para mim do que para o mundo, mas tenho a mania incorrigível de crer novo o que todos já sabem, o que faz de mim uma pessoa de obviedades.

Quando aprendi a ler, como toda menina pequena, li muitos contos de fada e histórinhas de objetos fantásticos, histórias estas que faziam com que meu mundo não tivesse a tênue fronteira entre o real e o...o que? o não-real? O onírico? Bom, qualquer coisa desse tipo. Ai, um bendito dia ( não lembro se de sol ou chuva, de calor ou frio ), caiu em minhas mãos o tal livro "Romeu e Julieta". Diziam ser a história de amor mais bonita de todos os tempos. Li. E tive que ler de novo. Afinal, que porra de desfecho é aquele? QUE PORRA DE DESFECHO É AQUELE? É uma pergunta que ressoa no meu íntimo desde então. Foi no auge de meus 8...9 anos,e mais uma série de situações vividas depois, que aprendi que o amor sempre esteve associado à uma certa melancolia, o que na verdade, está, mas, como sempre, fui desmedida com tal sentimento. Desmedida a um ponto de ser mal-educada e invadir um espaço de dor desnecessário e desproporcional. Roubei a dor do mundo, e de forma vil e mesquinha, acreditei que esta era a essência das coisas, quando a essência da dor só faz sentido para ela mesma. Passei a cultivar o hábito de enxergar o mundo baixo a ótica míope dos tristes e dos românticos chatos e incuráveis: aqueles que suspiram "ai de mim" como quem está prestes a morrer o tempo todo: transformam qualquer refeição em algo catastrófico: choram pelo peixe do aquário, não pelo peixe, mas por si se fosse um peixe. Enfim, uma grande besteirinha que vira um besteirão. Para aqueles que cultivam a tristeza, um aviso: ela bate à porta como uma joaninha, mas quando adentra o espaço se torna um grande hipopótamo que não te deixa ver TV ou sentar no sofá. É preciso paciência para que saia, pois, ás vezes a porta fica menor, e a janela é muito alta, e ninguém quer matar um hipopótamo, coitado, mas sabemos que ele deve ir para outro lugar. É simples marretar paredes: voam estilhaços, ficamos sujos, mas depois há jeito de arrumar, sempre há. Não há buraco que não possa ser tapado, a não ser aqueles que não devem ser, como o do nariz. Então, para quem cultiva o hábito da tristeza, experimente respirar um pouquinho melhor de vez em quando, pois temos a mania descuidada de sufocarmos tudo em volta, sem querer. É bom lembrar também, que há outros livros além de Romeu e Julieta ( é óbvio, mas, eu esqueço várias vezes), e que há também a possibilidade de arrancar as últimas páginas, reescrever o final, ou simplesmente não lê-lo. É fácil se enterrar na tristeza como um avestruz faz com a cabeça, a velha ideia do pessimista: não espero nada, pois assim não perco nada. E o que eu venha a ganhar, é lucro. Não sei bem se é desse jeito que escrevi mas a ideia é essa. Mas quem se habitua a ela, não consegue mais perceber o que ganha. Contam-se apenas as perdas e vive-se a vida com mais um  desses bordões dos românticos chatolóides: sou um perdedor no jogo da vida.

Enfim, a tristeza tem sua medida certa para cada ocasião, e deve ser respeitada. Aos tristes de plantão: Somos uns chatos.


domingo, 13 de outubro de 2013

A quase fantástica história da Sra.M.

Depois que o Sr. S partiu, ficou a Sra. M todos os dias no portão esperando o momento em que o Sr. S voltasse arrependido. Apesar da mudança de tom que decretara o fim desta vez, a Sra. M achou que fosse mais uma das indisposições costumeiras do marido. A Sra.M. habituara-se a ser uma coisinha que causava indisposição, então mal se apercebia nos espaços, e como estes foram ficando pequenos ao longo do tempo: as paredes decretando estado de decadência, a pele embolorada pelo úmido choro que preenchia os cantos.
A verdade é: quando ele se foi, surgiu um imenso alívio na Sra. M, até comeu mais de dois biscoitos e escolheu o sabor do suco que tomaria. Sempre deixou escondidinho embaixo dos panos de prato um pacotinho de suco de melancia que esperava o momento de ser tomado. O gosto da vitória era de mofo, pois estava vencido – era a vitória tardia e solitária da Sra. M, que experimentava depois de muito, sorrir com os dentes vermelhos de pó de melancia.

O tempo passou, e os dias então se tornaram desiguais. O Sr. S não retornou à casa, e em cima da mesa já se juntavam os pratos de comida fria à espera da boca a ser alimentada. Os travesseiros começaram a se esvaziar do cheiro dele, e a Sra.M foi invadida pela cruel ideia de que, a partir daquele momento, faria escolhas por si apenas. A solidão então passou a espreitar a porta todos os dias de manhã. As moscas invadiram a casa em uma tarde ensolarada em busca da comida fria em cima da mesa: caíram todas no chão de desolamento (para aqueles que são muito atentos, era possível até ouvir um “ai de mim”, vindo de um corpinho mínimo de anteninhas torcidas de um tedioso vazio ). As pessoas na rua a conheciam como “a senhora do portão”, mas não sabiam ao certo a razão dela estar sempre lá: quase ninguém lembrava do Sr. S, pois a Sra. M. estava quase sempre sozinha nas suas coisas. Conversava sempre consigo baixinho sobre suas futriquinhas para não irritar o marido. O que a Sra. M. não percebia é que a ausência do Sr. S. foi sempre presente: havia um limbo de distância entre ela e ele, mas gostava de ter um corpo preenchendo a cama de noite.

Para resolver o problema, experimentou escrever seu nome em todos os cômodos da casa. Escreveu Sr. S no banheiro, na cozinha, corredor, no travesseiro, na sala e no meio de suas pernas. A Sra. M acreditava que as palavras tinham algo de mágico, então, escrevendo o nome do marido pelos espaços, elas o corporificariam e preencheriam a falta. Mas esqueceu que o papel de parede já descascava; chegou finalmente o momento em que a fronha teve que ser lavada, o corredor era de passagem e o meio de suas pernas, bem, por banho ou por um desejo sinistro de toque, fez do nome do Sr.S um borrão de tinta. E assim viu os dias escorrerem, a tinta ir se apagando e o sentimento de espera se tornar contínuo. Chegou o momento em que havia apenas cadeiras em sua casa, e movia-se por entre os cômodos com um suspiro sonhador que era rompido apenas quando percebia a presença de uma lesma escalando lentamente as quase paredes de sua casa. “Sou uma lesma” um dia concluiu e tentou se matar comendo um punhado de sal. Só houve sede, e a sede despertou finalmente a lembrança de seu corpo, e depois de muito tempo a Sra. M. gritou um grito pavoroso que preencheu toda a casa, a rua e um pouco da rua de trás. Chacoalhava-se em um soluço sem fim, e em um arroubo de violência desmedida, arrebentou todas as cadeiras. Os vizinhos escutavam sem intervir “ finalmente, Sra.M., finalmente”.

Vieram dias de chuva, e a Sra.M. continuava estendida no chão debaixo das goteiras.

Então veio um dia mais claro. A Sra.M. levantou. Pegou uma vassoura e uma pá, e começou a varrer o estrago. Foram quase 147.563 kg de estrago e mais algumas cadeiras. No outro dia foi a vez de retirar as lesmas das paredes, que a essa altura, se assemelhavam à cobras mansas. A Sra.M. ficou banhada daquela gosma lesmática por alguns dias. Tirou o resto do papel de parede e a deixou desnuda: por baixo do papel, havia um tom suave de lavanda encardida. Fez um funeral digno para as moscas angustiadas, e finalmente jogou a comida fora. Lavou todos os pratos.





Já era primavera quando o Sr.S. voltou. Do portão viu que o jardim havia sido modificado e que cresciam pequenos arbustos nos fundos. A luz estava acesa e a casa havia sido pintada. Não pôde deixar de sentir um sentimento familiar de acalanto e lamentou a sua longa estadia fora. Tirou o chapéu, passou os dedos no cabelo e saudoso refez o caminhozinho do portão até a entrada da casa. Abriu a porta. Um cheiro de comida invadiu-lhe as narinas e gritou-lhe ao estômago. Chamou a Sra.M., e de novo, e mais uma vez. Estranhando a demora, encontrou um bilhetinho em cima da cômoda: “ Benzinho, sua comida está em cima da mesa. Não me espere para o jantar, com Amor, Sra.M”


Bem, a comida estava fria.

sexta-feira, 20 de setembro de 2013

A história do povo que não enterra seus mortos

A impossibilidade surgiu pelo fato de que vivem no subterrâneo.  A razão é parcialmente desconhecida por grande parte dos habitantes:  sabem apenas que quando nasceram já estavam lá. Uns dizem que o mundo “´lá em cima” é exageradamente hostil; outros dizem que seus antepassados padeceram de frio e descobriram que estando no “meio” nunca mais sofreriam desse mal. Outros dizem que desde o começo dos tempos aquele povo sempre esteve ali. Por uma razão ou outra, calhou que essas pessoas desenvolveram para si um sério problema: o que fazer com os mortos?

Religiosos, seguiram a risca o que dizia um certo livro “ e haverá o dia em que todos os homens subirão aos céus, e no portão o Senhor os esperará dando-lhes ás boas vindas”. O dito defunto então teria que subir para o céu: Atônitos por estarem na terra do meio, decidiram que , aprofundando cada vez mais na terra o defunto, tornaria difícil o caminho dele para o céu. A solução então foi colocá-los para cima, onde havia sol e onde se podia ver o céu: Vendo o céu, não haveria como errar o caminho, bastava apenas seguir uma vertical até o portão. O luto então para esse povo é finalmente ir para terra de cima. Prepara-se o defunto como se prepara alguém para uma grande festa: Penduram-lhe adereços e pintam-lhe a cara. O vestem com sua melhor roupa ( há até aqueles que em vida economizam uma fortuna para a roupa do próprio velório. Alguns insistem na mortalha, pois acreditam ser esta menos pretensiosa, mas, para os mais novos,  a mortalha é algo fora de moda), arrumam seus cabelos e perfumam suas partes. Quando os defuntos estão prontos, todas as pessoas conhecidas dele vão até a casa para se despedir. É um processo que dura dias, e alguns percebem no morto uma certa pressa, então preocupam-se apenas em se despedir e desejar boa viagem. Os arrependidos se desculpam, os ofendidos perdoam e as dívidas são pagas. Os apaixonados ganham uma última noite, e alguns até mesmo se casam: Para esse povo, é proibido partir com algo mal resolvido. O da terra deve ser resolvido na terra. Passado esse período, o morto está pronto para ir para cima.


Ir para cima é outra questão: só se pode ir para cima na hora certa, ou seja, na morte. Alguns corajosos tentaram escapar antes do tempo, e voltaram loucos. O tempo de cima é muito diferente. Como para esse povo não existe dia, toda dor é prolongada assim como toda felicidade. Não há passado nem futuro, pois o que chamamos de “dia” é para eles um único. O chamam de vida. E a vida é longa, e tudo que se sente na vida se estende até o fim. Os que subiram e sofreram com essa quebra de tempo, e viram que a vida nasce e morre em instantes tão breves aqui em cima, voltaram loucos e padeceram de um mal chamado solidão. Os solitários são levados para o solicômio e passam o resto da vida suspirando, olhando a janela e pensando que enxergam a troca do sol com a lua. Nos dias de intensa depressão juram com os olhos embargados, que conseguem ver através do teto um céu cinza. "Cinza?", perguntam os doutores do solicômio."Cinza", respondem e voltam a olhar o teto. Então, para despacharam o defunto, eram obrigados a subir com uma venda. Prendem o corpo do defunto em coisas ásperas chamadas “árvores”. Estas árvores, dizem os mais sabidos desse povo, eram o veículo para o céu, pois crescem verticalmente até o dia em que o alcançam. O que conhecem realmente das árvores são apenas as raízes, que alimentam para que possa crescer. É uma verdadeira confusão quando o povo de “cima” encontra esses mortos nas árvores, com tamanha alvura e tão enfeitados. Julgam ser um milagre e os devolvem à terra; o povo do “meio” quando encontra o defunto julga ser um milagre ( uma chance do morto se redimir de algo que esqueceu), e o devolvem para cima.
A maior parte deles não espera o momento de ir para cima: pois, na vida, a espera acaba por ser demasiado longa. Das coisas só enxergam as raízes, e a sua ideia de contagem de tempo está no respirar, que só cessa no momento de mudar de lado


Nota 1 : Pela relação de tempo deste povo, não desenvolveram o uso do ponto final
Nota 2 : O que aqui "em cima" apreendemos como morte, lá é chamado de horário ou merecimento, e só tem real início em contato com a claridade solar ou lunar ( o que para eles não faz diferença, pois os que respiram não enxergam, estão vendados )
Nota 3 : Desconhecem o que é "nublado"

segunda-feira, 9 de setembro de 2013

( Sem título ) - a história de outra mulher

- Sua xota fede!

Foi com assombro que recebeu esta notícia. Não ficou ofendida, pelo contrário! O que aconteceu foi uma sensação que mesclava felicidade com constrangimento, e dobrou-a em um acesso de riso que se estendeu por longos minutos sem pausa, assistido por um observador confuso. Quando a crise de riso passou, foi ao banheiro finalmente lavar-se para desfazer a confusão. O caso é: uma vez lera que Napoleão pedia à sua amada que não se lavasse enquanto estivesse na guerra, pedia que o esperasse voltar, pois queria impregnar-se com seu cheiro. E de repente, para ela, aquilo se tornou verdade: A espera do bem querer, até então, significava estar isenta de duchas.

E como culpá-la? Afinal, são tantos os erros que cometemos por conta destas histórias de amor.

( Sem título ) - a história de uma mulher

Ficou estendida na cama depois do ato do amor, olhando as costas curvadas de seu bem querer com seu arfar tranquilo. Estaria dormindo já? As únicas coisas que sabe é que não houve abraços no fim do ato, e a promessa feita no começo da noite pelo seu bem querer em seu tom habitualmente grave " Esta é a última vez". Ele dizia gostar dela, mas que sofriam de incompatibilidade ideológica. Atônita, ela se punha a choramingar " Eu largo tudo, não me importo". Ele a olhava carinhoso, e repetia que era por aquilo que ele se apaixonara, se ela mudasse, aquela pessoa não existiria. Vai entender, caralho! Não quero entender, quero ser! E, por ser a última vez, amou como quem morre, e soluçava ensurdecedoramente acreditando que gemia. Agora estavam deitados, cada um para um lado. Ela começou a rezar, rezou com o fervor de alguém que se converte quando recebe uma revelação, rezou para que aquela noite fosse contínua, eterna, para que Eos se esquecesse de estender seu manto de dia sobre os homens. Se pudesse, faria com que nunca mais amanhecesse. Observava com ternura seu bem querer dormir. Acariciava-lhe as costas enquanto olhava distraída para o banheiro: sempre ostentou o fato de que não era depósito de fluídos de ninguém, mas naquele momento ardia, queria ser e queria que ele colocasse o máximo dele dentro dela, que ele a invadisse. Era irônico o que acontecia ali, ela deitada com "aquilo" ( tinha uma dificuldade muito grande para verbalizar o que era: gozo, sêmen, porra - estava constantemente dividida entre a lascívia e o constrangimento), escorrendo por entre as pernas, com a dúvida atroz se limpava ou não aquilo que era a única coisa que sobraria dele mais tarde. Desesperou-se pelo momento que "aquilo" secasse e os lençóis fossem lavados: o pouco que sobraria de seu bem querer escorrendo pelo ralo como qualquer outra coisinha repugnante.

Então amanheceu. Ela ficou ligeiramente pasma com sua estupidez: Afinal, como poderia ter desejado que não houvesse mais Sol?

Levantou da cama sem se limpar, vestiu sua roupa e deixou seu bem querer dormindo. "Ele não percebeu", murmurou baixinho como se pessoas adormecidas tivessem a capacidade de perceber tudo. Foi saindo bem devagar olhando para cada canto do apartamento: queria memorizar cada espaço e cada sujeira na parede. Fechou a porta em um gesto definitivo : Não pode suportar a espera para ver se a promessa se cumpriria ou não.

domingo, 25 de agosto de 2013

Obrigada, Clarice

"...Amo os objetos à medida que eles não me amam. Mas se não compreendo o que escrevo, a culpa não é minha. Tenho que falar pois falar salva. Mas não tenho uma só palavra a dizer. As palavras já foram ditas me amordaçaram a boca. O que é que uma pessoa diz à outra? (...) É preciso ter coragem para fazer um brainstorm: nunca se sabe o que pode vir a nos assustar..." 
Clarice Lispector

Depois de muito tempo, retomo a leitura de suas palavras que por tempos foram um refúgio: conversava com seus livros como converso com um grande espelho, e fiz de seus trechos infinitos espelhos de mim, e se há algo que quase entra no eixo, são pelos versos que sempre me iluminaram de compreensão. Te conheci ainda pequena, na história de uma menina ruiva que encontra um basset ruivo caminhando pela rua, e desde então fico na busca de meus pequenos cachorros ruivos quando ando na rua, e tento manter-me distraída na caminhada, pois a espera te cega para o que é realmente importante. Descobri outros, confesso, que me tocaram tanto quanto, mas, nesse meu reencontro contigo é que encontro o início de mim como consciência de presença: Aprendi a construir-me em palavras, e senti a necessidade de começar a colocar no papel ideias confusas que surgiam no âmago em formas estranhas e incorpóreas que queriam romper a barreira da carne - esse constante vômito sentimental, a troca das partes, estômago, vísceras, pulmões, coração e joelho por cores e formas sutis que se desmancham, se fundem, diminuem ou expandem nos acontecimentos da vida, do céu de janeiro à janeiro. Assim como você, não entendo muito o que são as coisas que escrevo, mas sei, no fundo, que entendemos: em alguma parte no universo do sensível, em alguma gavetinha guardada no coração ou no cérebro, em que temos todas as respostas que achamos não ter: sabemos, alguns mais outros menos. Você sabia demais, e eu tento, miseravelmente e com uma admiração que transcende a admiração saber pelo menos 1/5 do que você soube. Escrevo como alguém que escreve para um amigo, e recosto seus livros em meu peito, para que as frases conversem com algo que não se acessa pelos olhos. Nos seus trechos descobri um pedacinho do que quis ser de mim.

quinta-feira, 15 de agosto de 2013

A história da primeira galinha na América

E como julgar a pobre galinha de estar cansada de ciscar sempre o mesmo chão? Ai que dor de sua condição, tão galinha, seu corpinho cheio de penas e as asinhas inúteis para tirá-la da granja em que a haviam enfiado. Quem olha uma galinha, pode acreditar que ela não tem muitas ambições na vida, mas a gente nunca sabe o que se passa no coração de outros seres, muito menos corações em que costumamos temperar com açafrão ou comer em espetinhos. Então, logo que se deu conta que não podia voar, nem era tão veloz e provavelmente só botaria medo em minhocas, viu em uma grande viagem a sua chance. Gosto de pensar que ela tinha qualquer nome parecido com Gaetana. Gaetana, a primeira galinha viajante e sua trupe de galinhas cansadas do mesmo chão e do mesmo milho jogado por uma velha rabugenta.
Quando souberam de uma grande viagem, a viagem para o "Novo Mundo", viram ali a possibilidade de um lugar onde galinhas correriam lentas e felizes por terras e terras de infinitas minhocas: haveriam céus e milhos, um bom lugar para colocar ovos. Finalmente as galinhas desafiariam a perversa natureza e driblariam as chamadas condições naturais. Levadas para um barco no colo, Gaetana e mais uma dúzia de galinhas foram colocadas em um granja improvisada no navio. O rugido do mar ressoava por dentro das paredes de madeira úmida do barco, e seus pescocinhos mexiam independente de seus corpos como uma série de pequenos budinhas em meditação. Será esse o mesmo tempo que demoravam os patos para voar de um lado pro outro? ( Era uma pergunta difícil de responder, afinal, nunca havia visto um pato, só escutado falar do tal que diziam ter penas bonitas).  De vez em quando alguma galinha indisciplinada corria para a superfície do barco e nunca mais voltava - Diziam de um tal lugar no barco onde as galinhas ganhavam tratamento especial, tão especial que nem saiam mais de lá. Mas Gaetana, ah esta se mantinha paciente em seu posto, tinha vontade de ver o que era o tal do mar, mas havia escutado falar de estranhas criaturas que ali viviam, geladas e escorregadias: peixes. Preferia manter-se firme para a chegada no "novo mundo". Saíram de sua terra, terra de humanos de olhos puxados, como heroínas, e assim queria chegar: as primeiras galinhas exploradoras da terra. O coraçãozinho palpitava no peito cheio de penas. E vieram dias e noites. Vieram homens de diferentes cores, chacoalhões infinitos do denso mar, até que um dia um humano gritou no começo da tarde um sonoro " Terra à VISTA!". Gaetana foi invadida por uma sensação esquisita que alguns dizem ser felicidade, apesar de não entender o que aquele grito queria dizer, ou o que era sentir-se feliz, mas escutara muito sobre isso no barco, e deveria ser algo parecido. No barco falavam muito de dinheiro, e decidiu que, assim que desembarcasse, arranjaria dinheiros, seja lá o que fosse isso. Logo o barco bateu em algo sólido e os homens atiraram-se na água para empurrar o barco pra algo que chamaram de praia - à essa altura, nenhum dos bichos, nem os bichos humanos estavam em seu lugar, tudo se movia de um lado para o outro, pois todos queriam ver a tal de praia: muito decepcionada Gaetana constatou que o furdúncio todo era por um monte de areia, mas, não estava lá para julgar e sim para viver. Foi a primeira galinha a descer a rampa do navio sentido ao chão, e quando seus pézinhos tocaram a areia, viu-se afundar. O sol estava alto no céu quando a primeira galinha pisou na América, elegante com sua cabeça draconiana.

Pouco tempo depois Gaetana foi morta com um sonoro cléc de pescoço e a cozinharam em seu sangue, em um prato que depois ficou conhecido como  galinha ao molho pardo. Sorte de quem comeu seu coraçãozinho viajante.

quarta-feira, 14 de agosto de 2013

Sobre o peso das coisas

Navego sem saber se o que me embrulha o estômago é o curso do barco ou as sílabas que se agitam furiosamente querendo criar falas para sentimentos mal-entendidos. Brotam na garganta com uma voz estranhamente conhecida, mas saem do corpo como que em outro idioma - eu não entendo o que quero dizer a maior parte das vezes.
O peso das palavras começa a me afundar.

segunda-feira, 12 de agosto de 2013

Corpangústia

E sabem muito bem aqueles que passam as madrugadas em uma lucidez assombrosa com os olhos arregalados para o escuro: A angústia é corpórea, visível na mirada descarnada daqueles que possuem desespero de afeto.

quarta-feira, 7 de agosto de 2013

Rascunho

É incrível como os pensamentos fluem nos momentos em que estamos de passagem. As grandes revelações sempre surgem destas caminhadas. É como se toda a informação recebida começasse a decantar, acionasse uma pequena válvula por onde as ideias escapam, e, na solidão do trajeto, ser sincero consigo mesmo seja algo viável, afinal, ali, é apenas consigo que se pode dialogar.

Canso de criar personagens para mim para que possa conversar comigo enquanto caminho. E enquanto danço. E enquanto ouço música – a verdade, é que me acho muito chata, então, me disfarço de possíveis mins que me agradariam mais para que possa me aturar. Nestas séries de enquantos do dia, coloco no lugar o que parece fora do eixo, o que, claro, depois de um tempo, volta a envergar – mas enquanto não enverga, são 5 minutos de paz e clareza. Estar com o(s) outro(s) me amedronta, pois acho inevitável (e assumo ser este um erro imensurável), utilizar-me das pessoas como espelho, o que, por sinal, é algo muito injusto: afinal, não me reconheço, e não reconheço o outro neste processo. Algumas cisões são necessárias para que a coisa toda funcione. Me apego ao outro, pois acredito que ai está uma forma de estar: Se estão comigo, é porque, por minha vez, estou também. Quantas vezes sozinha me peguei no desespero de não saber se realmente estava – se realmente existia – e a resposta estava no outro:  acredito que a melhor forma de provar-se ser vivente é na troca.

Fiz uma série de descobertas muito cedo que não me levaram a nada. Minto, fiz uma série de descobertas que me levaram ao nada. A descoberta e a busca pelo tal dito conhecimento me impulsionou a uma busca irrefreável de desconstruir absolutamente tudo: como questão filosófica clássica, comecei matando Deus, e utilizando-me de Dostoievski, “se Deus não existe, tudo é permitido”, comecei então a desconstruir tudo o que me foi possível, chegando ao famoso vazio existencial, o que me fez querer, por milhares de vezes, morrer (mas nem assim resolveria meus problemas, pois, mais que Deus, a morte é a maior das minhas questões: Para quem não crê no corpo, nem no espaço em que está, nem em Deus, o que seria então morrer?)

Como, a partir disto que escrevo, não poderia então, começar a inventar tudo o que sou e que faço? Como sustentar as ditas verdades e viver segundo elas, quando o que sou, e o que quero está em constante transformação, a partir do momento que me ponho no lugar de escritor e personagem todos os dias, a todo instante?

- Tracei uma teia para mim e fiquei presa nos fios que teci, e agora espero o grande bicho me destruir: Do outro lado me observo, esperando o momento propício em que, na fome de mim, me engula.

segunda-feira, 29 de julho de 2013

O que escapa de sua boca é dolorido, atinge em cheio meu corpo frágil feito papel, mas não se pode ouvir as fibras rompendo pois a única preocupação que existe neste momento é a que você possa ser escutado. Mas entenda, não posso mais entrar em competições, pois perco todas. Não tenho fôlego, nem vontade mais de provar qualquer coisa, que nem sei ao menos o que é. Fico ereta sustentando verdades das quais duvido, enquanto no meu íntimo ensaio vontades de mim como uma recém adolescente cria personagens de si para o futuro. Sozinha sou tudo o que preciso de mim: qualquer coisa que não divido com ninguém, mas me assusto ao lembrar que esse futuro que projeto é o meu tempo presente, e que alguém coloca os olhos grandes em mim e me pede abertura para eu ser colocada à prova de coisas que não entendo - mas é o necessário, dizem que é o necessário, para que se possa ocupar um lugar, uma grande vitrine de ganhos - nunca sei qual é o lugar que ocupo.
Se abro a boca, é possível enxergar uma multidão: fica sempre presa no funda da garganta. Para que saia, sou obrigada a arrancá-la, enfio o dedo na garganta na tentativa de causar vômito para que escapem, enfio o punho, o braço inteiro, encaixo os ombros até me engolir e virar-me do avesso, e ali surge a multidão, perto do estômago, com fome de luz. Mas são tímidos, entende? Não querem nada além de ser, o que me obriga, ao competir, utilizar-me do meu não-eu, pois o que há em mim não faz e não vê sentido ao que me pedem. Há estes olhos que me espreitam o tempo todo, mas são incapazes de ouvir o burburinho que me escapa do fundo de mim.

sábado, 22 de junho de 2013

Impermanência

Que faz meu nome fora da tua boca?
Quisera eu enxergar o que observa teus olhos cansados, que não meu seio em riste e meu ventre ansioso. O que te prende em devaneios, e me embaça frente teus olhos?  O que há detrás de minha nuca?

- minha voz soa como um eco: percebo o esforço em voltar e a tentativa de entender as palavras que estouram como um soluço agoniado -

Desconexos. Bastou alguns segundos para que o silêncio se instaurasse entre nós, criando um vão que engolia as frases não ditas. Nos reconhecemos como dois desconhecidos.

domingo, 9 de junho de 2013

Anotações de caderno em tempos distintos

Breve anotação de algo que me aconteceu na semana passada:

Há pouco me peguei rindo sozinha, repetindo uma palavra estranha: Paloma. Passei minutos inteiros repetindo essa palavra com diferentes entonações e tempos, sentindo a boca toda trabalhar a internalização desse som que, com uma leve surpresa, lembro ser meu nome. ( Para quem quiser tentar o exercício, Paloma é uma palavra divertida de pronunciar, tem algo de roliço na forma como sai da boca).
Fui obrigada a anotar em um papel  "meu nome é Paloma" para que não me esquecesse mais ou corresse o risco de cometer algum equívoco. Fui obrigada a rir disso.
Paloma: substantivo próprio, concreto, sujeito da ação, linha de contorno, delimitador de forma. 1ª pessoa do singular.

- Alguma coisa ali se remexia no meu íntimo, fazendo esta tímida saudação

Breve anotação de algo que está acontecendo agora:

Desliguei o telefone a pouco, com água nova no copo. Sempre há água no meu copo, pois necessito de mergulhos constantes para me manter presente. É cheio, mas não transborda. Bebo tudo, mas nunca até o final - seu fim ou seu total preenchimento é algo que sempre deixo suspenso.
Encontrei então meu caderno, o qual havia feito a anotação acima e chorei. Paloma não me faz saudação alguma há alguns dias. Tenho vivido um estado constante de sonolência e ás vezes ausência da vida, onde tudo se desenrola automaticamente. Para ser saudado, precisamos prestar atenção - e não digo de um grande esforço ou isolamento para sentir o mundo - é se fazer presente.

A verdade é que aquela Paloma, perdi: fez sentido naquele pequeno instante. Não há uma linha limitadora, há pequenos pontos que parecem uma linha mas que contém espaços, que são os necessários para que a coisa, no caso a Paloma, exista e se conecte com o mundo ( e agora, agorinha mesmo que escrevo isso, lembro da tatuagem de uma amiga muito querida, que possui um círculo pontilhado no tornozelo- queria te dizer que nunca te achei tão sábia quanto agora). Não existe Paloma, o que existe é tudo aquilo que se consegue juntar em um determinado espaço, que para  acessá-lo, necessitamos que seja inventado um corpo: É algo complicado de explicar, mas é o ajuntamento de todas as pessoas (ou pontos que contornam) e que se encontram no espaço, e vão se cruzando e modificando a água do copo de cada um. Mas a troca da água só acontecesse na presença - quando não estamos, tudo dispersa e só há o vazio: a presença preenche, e o vazio espera ansiosamente servir para algo. Não há muita coisa além desse todo que está em constante transição, e ai, agora, não identifico meu nome de novo. Caso me chamem de João, Maria, planta, memória ou lugar, respondo por todos esses nomes. Pois sou tudo que um dia permiti que se embrenhasse por entre meu espaço de forma presente e verdadeira. Sou o breve espaço da troca.

É claro que há muitos outros que escreveram sobre isso que escrevi acima de forma mais clara, melhor e com um entendimento e uma sabedoria anos-luz maior que a que escrevo. Mas necessitava trazer essa breve compreensão que se assemelha com um vaga-lume perdido em um galpão, com palavras que saíssem desse copo que tenho agora. Na verdade, não há nada de secreto ou revelador, nada que ninguém não saiba ou sinta. Registro pelo simples fato de precisar lembrar e querer dividir - não sei como vou acordar amanhã, e talvez leia isso tudo e ache uma grande bobagem.

sábado, 1 de junho de 2013

Uma volta na cidade paraíso

Muitos são os caminhos a serem percorridos. Logo após a entrada, há uma cidade que se desdobra em horizontais, verticais e escadas circulares a perder de vista. Vielas infinitas, que aportam apenas um corpo de cada vez em sua passagem para o lugar que nunca chega, uma luz distante provinda de um muro que não está.

Um gato mia.

Aquele que segue concentrado em seu caminho norte-sul, na retilínia dos encontros e dos olhares, talvez passe desapercebido pelo ser vivente que respira perto de seu ombro - o paraíso está para quem olha para os lados. Mas para aqueles que se permitem a distração, terão para sempre gravado na retina a imensidão do corpo que dorme ao lado da gente sem fome. Os espaços da cidade, para quem se atreve ver, nunca mais serão os mesmos - os muros serão derrubados, o barulho ficará mais alto, a noite gelará os ossos de medo e de compreensão.
É uma cidade de peculiar riqueza: no centro de seu corpo disforme, caótico e fragmentado, existe uma rígida coluna vertebral a sustentar os aflitos. Remexendo um pouco na sujeira, descascando as paredes com uma colher, é possível encontrar ouro. Não é necessário escavar tão fundo, basta aquele olhar atento de mãe que se pode ver algo reluzir. Existe muita riqueza, na cidade paraíso, em estado bruto. Mas há de se estar atento quanto a se crer rico lá: Quem quer ensinar é quem sai ensinado.

sexta-feira, 31 de maio de 2013

Há de se tomar cuidado quando pensamos que temos muito a dizer. Somos atualizações do mundo, que se utiliza do nosso corpo como meio de passagem para poder existir. Estamos todos conectados a um todo que não sabemos o nome.

Preencho o vazio com açúcar - Fragmentos de memória

"Jogue o lixo no lixo, não jogue nada no chão
Vamos limpar a escola, cantando esta canção
papel de bala, goma de mascar, papel amassado,
não jogue nada no chão"

Essa era a música que o Tio Luís, meu primeiro professor de música, cantava na hora do lanche. Ele era o cara mais legal da escola. Era moreno, e tinha um cabelo todo enroladão. Era manso de tudo. Está certo que não foi ele quem me ensinou a tocar flauta, mas com suas músicas aprendi a não jogar o lixo no chão e a escovar os dentes direito. As aulas de música aconteciam toda sexta-feira, no mesmo dia do dia do brinquedo, coisa esta que eu sempre esquecia de levar. Mas a tristeza da ausência do meu bichinho era rapidamente substituída pela lembrança de que haveria aula com o tio Luís.
Naquela época ainda gostava da escola. Adorava as vezes que por algum erro de percurso de meus pais, era obrigada a passar a tarde toda lá. Devia adorar também porque não era algo que acontecia sempre. Foi na tenra idade dos 4 para os 5 anos que aprendi a ler, então, ficando na escola, era a chance de me aprimorar. Claro, junto da professora. Carregava comigo uma caixinha de livros que ganhei de uma vizinha. Era uma caixinha com livros de história da Disney. Quando a abria, tocava uma musiquinha bem melancólica para uma caixa de criança, era algo parecido com tãnãnãnã tã tãnãnãñañañaña tãnãnãnã tãnã, e ia se repetindo. A professora ficava junto para me ensinar a ler o 'p' mudo e o'h'. Mal sabia que exatamente ali descobria minha perdição: desde então, o livro se tornou inseparável de mim.
Foi nesse tempo que amarguei minha primeira decepção. Havia uma música, acho que da Dalva de Oliveira, que cantava a estrela Dalva, música que cantei por anos muitos trechos errados, mas lembro muito bem da parte da "estrela Dalva, no céu desponta, e as pastorinhas  no céu a voar". Eis que, graças a esse trecho, tive uma vontade súbita e fervorosa de ser a estrela Dalva, para ficar no céu junto das pastorinhas. Passava muito tempo planejando meios de voar para alcançar o céu. Me tacava de cima da cama, dos degraus da escada, mas me ensinaram muito bem a ficar longe das janelas, o que encerrou minhas possibilidades de vôo. Na verdade, me ensinaram muito bem muitas coisas, o que ajudou com que daquele momento em diante parasse de gostar de muitas coisas, inclusive a escola.
Fiquei cansada de ser ensinada.

terça-feira, 28 de maio de 2013

Amorangústia

Esse amorangústia oferece-me suas mãos vazias enquanto brinca no meu corpo de cavocar o peito com uma colher. Engole todos os pedacinhos de mim na sua fome de afeto. Foi consumindo tudo e ficou com um estômago repleto de mim, enquanto eu, fiquei com a ausência esparramada na cama, na espera de algo que preenchesse as vísceras murchas que o amorangústia esvaziou.

quinta-feira, 23 de maio de 2013

Anotações sobre o acalanto

Confesso que hoje amanheci tristonha e até chorei no caminho para ir aonde deveria ir, dando passo por passo como quem caminha para a morte. Há tempos que sinto esta angústia, esse nó na garganta, desses bem apertados, daqueles que te causam a ligeira impressão de que existe um corpo estranho que se perdeu e resolveu se instalar em um lugar que não é dele. Caminhava com esse nó e um acesso de tosse. Ia assim, em uma confusão que misturava chorar, engasgar, soluçar e tossir. Era quase engraçado, se não fosse minha tristeza.
Na verdade, estar triste é uma constância em mim. Já quase não me incomoda, acostumei-me com sua presença da mesma forma que o corpo se acostuma com o frio depois de um bom tempo de tremedeira. O que não significa que haja em mim algum tipo de desamor, ou algum flerte com a morte. É apenas aflição de tudo aquilo que sou incapaz de acessar. Tenho, claro, alguns momentos de riso sincero, os quais consigo trocar a água da minha tigela por um punhado de açúcar. O que me impulsiona a escrever neste momento, é esse momento de troca, pois, depois da manhã aflitiva, meu peito inflou-se de uma doçura ímpar, e digo, não por uma conquista minha, e sim, de uma vontade real de compartilhar da felicidade de outro. Aquela coisa da água de lastro. A generosidade de quem dividiu comigo um afeto e uma alegria tão sincera, criou em instantes dentro de mim um novo ambiente. A pequenice que sinto de mim, agora, quase não me incomoda.
Se sou um aquário, algo de mim, de alguma forma, ainda se conecta com o mar. Mesmo minúscula e irremediavelmente vulgar, contenho vida dentro de mim.

segunda-feira, 20 de maio de 2013

Anotação ligeira

é por meio da escrita que tento criar um corpo para mim, algo mais palpável que essa massa inconsistente que insisto em manter. Mas quando deixo que estas palavras saiam de mim para dar forma, começo a escapar por entre os espaços e os respiros do texto - não há forma que me suporte.

domingo, 19 de maio de 2013

Notas sobre um anônimo

Insetos são realmente uma grande questão para mim. Não sei realmente o que pensar sobre o assunto, há um entendimento dentro de mim de que não se deve interferir em alguns sistemas que existem na natureza, mas aquele bzzzzzzz me põe histérica. Mas juro, tenho tentado. Começando pela percepção de que talvez, não se deva matá-los. E toda vez que tento internalizar estas questões, me aparece uma barata. Sempre.

Comecei pelas pequenas coisas: Tirava lagartas e taturanas do meio da passagem para que não fossem pisadas. Tirava bichinhos que se afogavam na piscina, afastava com pano as mariposas e assim por diante.
Não entendo qual a relação de insetos com água. Ou entendo, até hoje deito na beira da piscina e mergulho só a cabeça, até que alguém me chame, ou até que eu não consiga não respirar. Talvez eles gostem de molhar a cabecinha deles e caiam sem querer. Eu mesma já caí muitas vezes quando pequena e tiveram que me tirar. Afinal, havia algo em comum entre nós. Vinha com a rede e blupt, insetos para fora.
Um dia estava deitada na beira da piscina, com aquele solzinho de fim de tarde no umbigo quando ouvi algo bater na água. Era o bzzzzzzz mais alto que já ouvira na vida, mas tudo bem. Me preparei para pegar a rede, quando olhei o que havia caído. Era enorme, e aquela imensidão de várias patas gelou minha espinha, minha boca e meu cérebro por alguns minutos. Não sei que bicho que era, só sei que era grande e negro e abria e fechava suas asas de renda sem parar - mas não era desespero, era algo mais sutil, um pedido. É, quase um pedido de ajuda, digno, ponderado, bicho. Mas por algum motivo não pude. Tive medo de retirá-lo da água e de repente não sabia nem aonde estava a redinha, só conseguia observar. E as asas de renda continuavam sua dança mórbida na água. Tentei conversar com ele e explicar minha situação. Conversava com um tom aguado na voz, dando direções, explicando como podia sair. Empurrava a água de leve para direcioná-lo para perto da borda, ele só se deixava ir. Não estava entendendo. Comecei a falar mais alto, ouvia sons esganiçados saindo da minha boca, queria que ele entendesse o que lhe aconteceria se ele não fizesse força, pedia desculpas pelo meu medo. Meu corpo fazia sombra na água onde ele estava a abrir suas asas. Não sei quanto tempo durou o processo todo, há uma espécie de suspensão do universo nesses momentos de escolha, sabe, quando temos que escolher se seguramos na borda ou se desmanchamos na água. Sentei com uma vontade imensa de afundar a cabeça na piscina, aquele mal estar que não consegue escapar do corpo, fica preso na gargante, no quase sair que nunca acontece.
Do mesmo jeito que surgiu, se foi. Como se algum sinal tivesse tocado, algum sinal que eu não acesso, ele parou de se movimentar. Não foi gradual, nem compassado, foi com uma obediência de soldado- só parou, as asas fechadas, as patinhas, o corpo exageradamente negro. Assisti ao longo processo da morte, o corpo dele afundando. Não tinha mais sol, havia um defuntinho no fundo da piscina que seria sugado pelo ralo até se desmanchar e havia eu, sozinha, impotente e medrosa testemunhando o espetáculo promovido pela morte: engasgado e silencioso.

A rede da piscina estava na beira oposta, apoiada em um vaso perto de um pinheiro.

segunda-feira, 13 de maio de 2013

Faço o que faço para me livrar da ânsia

E é isso: Não faço literatura, não faço arte, não faço nada. Não sei articular nem dar forma para as coisas, e há muito que tento com um desejo sincero transformar essa ânsia em algo palpável, que tento dividir para ver se há algo, ou alguém que de alguma forma se identifique com esse monte palavras e me diga que é natural. Mas o que consigo colocar para fora é vômito, é resultado dessa náusea, dessa vontade de ser alguma coisa que não apenas eu - essa ideia me é insuportável, pois, dar-se conta de si no mundo é dar-se conta do que te pertence e do que não está ao seu alcance, das limitações e das insuficiências, e naquele afã de querer se exceder carregamos bagagens que não são nossas, e a ilusória sensação de que não cabemos nos espaços, quando na verdade sobramos. Inventamos o tempo inteiro qualquer coisa, só para preencher o tempo, quando, o que somos, é tão mais sutil e mais discreto.
Não sou nada, e parei de ter a pretensão de querer ser algo além do que posso ser. Se escrevo, se desenho, se danço, é porque necessito - nada disso me levará para lugar nenhum. É esse regurgito que vem do fundo do estômago, essa dor tão presente que se faz corpórea, ganha peso e necessita sair.
Faço o que faço para me livrar da ânsia, desse mal estar constante de tentar me entender no mundo.

sexta-feira, 10 de maio de 2013

Meu maior erro foi ter aprendido a ler

Meu maior erro foi ter aprendido a ler. Creio, que com a melhor das intenções do mundo, meus pais acharam essencial para minha educação que isso acontecesse, e no meio de sua ingenuidade ainda me ragalavam livros: 1,2,3,15 livros para descobrir o mundo. Mal sabiam que com isso, o que faziam era me condenar a estar para sempre no quase - quase feliz, quase plena, quase inteira - pois quando entrei em contato com essas descobertas, com essas possibilidades de mundo(s) e de sermos maiores, me dei conta de minha pequenice e minha insuficiência: Tanta coisa a se ver e se fazer, e tão pouco tempo, tão pouco corpo, tão pouco tudo.
        Sinto que estou dentro de um tubo de infinitas curvas, engatinhando. O único que posso fazer é seguir adiante, pois já não sei por onde entrei,  fecharam a passagem. Se fico parada sufoco. Só posso seguir em frente, tateando no escuro até que o túnel acabe. Não há jeito: Depois que entrou não há volta.



Nunca terei um copo cheio.

quarta-feira, 17 de abril de 2013

Desencontro

Vivia na janela
fazendo psiu pra passarinho:
passarinho vem aqui
e leva meu recado
escuta direitinho
e cantarola
teu canto agudo
de manhãzinha pro meu  bem querer
coloca no teu bico
todo meu afeto
e diz que o espero.
Tombou de solidão
na jardineira da janela
estendeu o corpo em flor
ainda nem desabrochada
esparramou solitária na terra
e repousou sobre o vazio da espera.
Ele não veio
nem o passarinho.

sexta-feira, 12 de abril de 2013

Para meu afeto.

Para meu afeto
escrevo baixo o sol da manhã
que acalenta meu corpo, acarinha a pele
como o corpo seu quando me acosto ao teu lado
entregue ao cansaço

Logo eu, que lutava tanto contra estas coisas
ditas coisas de apaixonado
que ria, crendo ridículas as pieguices dos que escancaram
alegres, plenos, o amor escolhido
me vejo nesta condição, ridícula.

E que feliz, confesso! É estar neste papel
vai colorindo meus dias , modorrentos
infla o peito de saudade
me faz caminhar na rua com um riso frouxo
acalma o coração inquieto

E mesmo quando em água turva
as braçadas pareciam não ser suficientes
e me afogava no mar de palavras que tinha dificuldade de dizer
me fazendo pequena frente a ti e ao mundo
resguardava em mim um sinalizador no peito

Um estômago cheio de flores
que não mais se enroscam, não machucam
e se me transborda o choro
é de uma emoção, simples
mas de imenso tamanho.

Não há promessa de futuro
nem uma preocupação com isto. Deixo acontecer
todos os dias. Para que se renove
Não amamos igual todos os dias
só amamos, insistentemente.

Se não me faço clara
é a vontade de traduzir esse fluxo
que tem sido presente no meu corpo
que em palavras se faz tão falho
mas que dentro de mim é claro, sincero, sentido.

terça-feira, 2 de abril de 2013

Para abrir os olhos


Um passo de cada vez, é o que sempre dizem. Um passo de cada vez. Pedem cautela, muita atenção. Análise. Investem no medo do chão, na fragilidade do corpo, na incerteza de tudo o que não é visto. Passo a passo, construo um caminho pautado em uma segurança inventada, com bases quase sólidas que dizem me sustentar. Apenas dizem, pois, quando nelas, sua instabilidade é tão forte quanto algo não demarcado.
Fecho os olhos e me entrego, seguindo instintivamente, sempre adiante, pisando em estruturas frágeis que são tão externas a mim. No percurso, a terrível constatação: Nada disso é meu. Caminho diante escolhas que não são minhas, me isento da responsabilidade maior de partir para o mundo carregando meus tijolos para construir algo em plena consciência. 

Me faço livre na queda.

segunda-feira, 1 de abril de 2013

Colagem 2: Sono de sereia

( versos feitos com colagem, tema sugerido)

Efêmero

o sono é perturbado na primeira vinda da onda





Alguma coisa
mais substancial
do que se adaptar











fôlego longo.

Colagem 1: Autorretrato

( Versos propostos por meio de colagem, tema sugerido )

Mas o que foi bonito fica com toda a força
fumo de cigarros.

domingo, 24 de março de 2013

Cotidiano

Havia saído do trabalho, e por ter sido um dia difícil, me permiti uma regalia - sorvete. A coisa é: eu amo sorvete. Poderia viver de sorvete, tirem tudo de mim, menos sorvete. O gelado na pele já me estampa um sorriso, e sua massa colorida na vitrine é o suficiente para horas intensas de prazer. A escolha do sabor é dolorida, mas facilmente esquecida quando o eleito toca a língua. Sorvete para alegrar o dia, principalmente os modorrentos como aquele. Mas apesar de meu sincero afeto, é um hábito que tenho perdido, pois também é fato que sorvete engorda, e infelizmente, nesse aspecto sou uma puritana, e como tal, não queremos cometer excessos para depois nos culparmos durante a vida eterna.
Me permiti, um pequeno prazer. Entrei no conjunto nacional, e logo na entrada há um estande novo, com sorvete. Pistache e framboesa, por favor. Não era sensacional, confesso, o de pistache tinha gosto de licor barato, mas era verde verdinho como tinha que ser. Apoiei meu livro na bancada e tomei sorvete olhando para a rua. A entrada do prédio fazia uma moldura divertida para quem estava dentro dele, como eu. Pitoresco. Uma banca de jornal, crianças pedindo comida e leite, gente de terno passando rápido, um outro shopping do outro lado da calçada. Menino que quer ser menina. Menina que quer ser menino. Meninos e meninas que não querem ser nada, e meninos e meninas que querem ser muito, com suas pastas e roupas de gente importante. Todos de passagem, nenhuma figura se repete. Exceto o senhor com o clarinete, sentado em cima de um banco improvisado. Esse está lá todo dia. Toca Ravel, Shostakovich, Bach, Tchaikovsky, e sei lá mais quem. Nunca vi ninguém jogar-lhe uma moeda. Eu mesma nunca joguei, e nem nunca havia parado para escutar até então. Era tão comum já como qualquer prédio que ninguém nunca lembra o processo de construção, e um dia se assusta de ver que está lá. Queria terminar o sorvete logo...
O que quero dizer com essa narrativa? Absolutamente nada.

segunda-feira, 18 de março de 2013

Para a Tata

E faz dias que ensaio algo para te escrever. Leio Drummond, Vinicius e Camões, olho infinitas árvores durante meu percurso, árvores estas que sei serem tão de seu gosto. Remexo o pouquinho de você que ainda existe no quarto, vejo fotos, ouço seus discos, que se antes eram gestos de transgressão, agora são de saudade.
Mulher, queria sinceramente lhe escrever algo, mas não consigo. Mas nunca, ouviu? Nunca cogite que isto seja falta de amor - se me engasgo nas palavras, é por excesso.

sexta-feira, 8 de março de 2013

Descompasso

Havia um senhor no metrô com vitiligo. As manchas subiam pelas suas mãos e se perdiam na manga da camisa. Qual será a sensação de ter o seu corpo se revoltando contra você? Espero com certa ânsia isso, não é algo que se diga, mas espero ansiosamente isso. Um protesto celular que decida não mais produzir, e ir presenciando estas camadas morrerem. Eu não pertenço a este corpo, e ele sabe muito bem. Existe em mim essa sensação, sempre presente, de que alguém me emprestou e esqueceu de tomar de volta. Então espero, com um breve receio, o dia que ele se revolte. Ou o dia que eu me revolte antes e abra a força, que o lote de fissuras, para ver se escapo por entre as aberturas.
Acordo todo dia e fico nua diante o espelho, pois tenho que me reconhecer todos, todos os dias. Sinto a boca se movimentando dizendo algo como "Olha só o que eu não sou".

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

Anotações sobre o desenho

O desenho é a utopia da produção. É a partir dele que o mundo se faz todo em possibilidades, as narrativas fantásticas tornam-se palpáveis, suficientes para encher os olhos e transportar a quem assiste para o absurdo. A arte contempla o improvável, haverá alguém que me diga o contrário? Propõe projetos que se utilizam de um esquema racional de cores e formas e que tentam conter em si o emaranhado do existir, a confirmação de um sujeito que enxerga, sente e participa do mundo.
Possui personalidade dúbia, o desenho - É o desejo de construção de um mundo novo pautado no conhecido. Está no campo da memória e do afeto, tem algo de ideológico no fundo, como um ato transformador. É frágil, suspenso, é um sonho vivido, seja na busca do traço ideal ou na confusão de linhas.
É a vontade de inventar. Um registro efetivo de si no mundo. Impressões anotadas, pois, buscamos de todas as formas continuar nele. Somos mortos conversando com mortos, a nossa questão é quando. E enquanto isso não se responde, desenhamos - lugares, pessoas, amores.

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

Algumas linhas e uma pergunta

E qual a razão de estar
Se não a de amar e ser amado?
E de que adiantaria um outro algo
se em curto tempo desmancha
escapa em um desvario
e a tentativa da fala se abafa
com um punhado de terra na boca.
Mas há ainda quem insista
que na verdade, a vida não há
o que existe é algo similar
questão filosófica.
E quando esta não for suficiente
experimente um punhado de açúcar
bem na ponta da língua
do outro
escorregando, úmida
rompendo o resguardo dos dentes
adentrando o espaço perto do céu
preenchendo a boca do mundo

um copo espatifa no chão.

Anotações

Hoje acordei com o peito um pouco mais pesado que nos últimos dias, com uma vontade de choro infantil, daqueles que se acalmam com colo, com a cabeça encostada no peito de alguém ouvindo as batidas do coração. Mas não quero pedir nada agora. Estou aprendendo a manter o silêncio das vozes em mim, até para me escutar melhor. Tenho mania de dar preferência para que os outros dizem, e esqueço que a minha opinião nem sempre me atrapalha.
Outro dia aprendi uma palavra nova: Peripatético. É um termo aristotélico, que tem o sentido de se aprender andando. Vou falar menos e andar mais. Ganhar mundo mesmo, para ver se acalmo o peito até que a vontade de colo passe. Eu acho que é o medo de querer ser. Vai que realmente a vontade se torna algo. Tem que parir e bancar depois.

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

Com açúcar

O amor no claro é sempre triste
vaga solitário
no meio de tantos outros.
Mas não resista
não deseje prematura morte
nem se machuque mais do que já está
machucado.

Ninguém nunca sabe a hora
que desatina a doer
mas lhe garanto: é pontual
Aperta e passa. Nem sempre.
Ás vezes tem que fingir que a gente esqueceu
e ninguém sabe
só a gente. Dentro da gente
no escuro
que ele insistentemente se faz presente.
Mas não conte nada.


domingo, 10 de fevereiro de 2013

Versos para um quarto escuro

Hoje é para ti que escrevo
e para seu suave aconchego
cúmplice de tudo que
em desatino ou em gemido
me viu abafar no travesseiro.

Um rabisco na parede
uma foto pendurada
uma cama, que já não se faz tão vasta
a este corpo, que cresceu dormindo em seu colchão
me espia.

Junto infinitas coisas em um canto
são cartas, desenhos, memórias
algo de mim que se fez matéria
mas já não entendo
porque já não sou aquilo, nem isso

Sou qualquer coisa
que se fez longe do teu espaço
e que trouxe pra casa
e costurei no corpo
estranho é perceber que aqui, nunca houve espelho

e foi sempre entre suas paredes
que me fiz inteira, o suficiente
para não me fazer
ressentida com o mundo
sozinha aqui, era tudo o que precisava de mim.









segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

Do milagre que não sou eu

A coisa é: em algum momento da vida, e pode ter certeza que esse momento é uma das poucas coisas certeiras, nos depararemos com as seguintes palavras - catarse e epifania. Alguns se demorarão em suas letras, tentando extrair das sílabas alguma explicação significativa; outros farão suposições e outros passarão reto por elas e talvez nem se apercebam da existência dessas palavras, e quando as escutarem de volta farão aquela cara de "hãn" e o instante passa. Para quem se interessa, o significado delas, segundo o dicionário:

catarse: 1. Purgação 2. Purificação 3. Método de purificação mental que consiste em revocar à consciência os estados afetivos recalcados, para aliviar o doente dos arranjos físicos e mentais oriundos do recalcamento.
epifania: Manifestação de Jesus Cristo aos gentios na pessoa dos Reis Magos que o vieram adorar. Comemorava-se este acontecimento como a festa litúrgica da epifania.

Parecem estranhas quando olhadas desta maneira, mas foram emprestados a estas palavras significados além dos seus originais. Podem estar associadas à revelações e transformações ocorridas a alguém por conta de um acontecimento. Esse sentimento repentino, mesmo que passageiro, de finalmente ter compreendido a essência de algo, de ter conseguido finalmente visualizar o "todo", que ninguém sabe explicar o que é, mas sente.
Uma dúvida frequente em mim, é de como nos damos conta de ter vivido uma experiência desta, pois, sentimos tantas coisas ao mesmo tempo e somos estimulados por tantas formas, que eu tinha medo de que isso acontecesse e eu não percebesse. Ou então caía em um erro constante de minha pessoa: que tudo só é sincero se nos sentirmos arrebatados - o sentir pela dor, pela falta de ar. Ora, e depois falava de estar em paz. Vai entender...
Antes, podia citar vários momentos em que achei que pudesse ter vivido uma destas sensações, e talvez até tenha, mas nada como a história que vou contar agora.
No final do ano fui para Minas Gerais sozinha. Queria conhecer Inhotim ( um museu de arte contemporânea à céu aberto), aluguei uma pousada no meio do mato, e de lá, entre ônibus demorados e caronas me virava para ir de um lugar para o outro. A gente sempre conhece muita gente boa com esse tipo de coisa, ouve histórias, facilita uma disposição para trocas. Mas isso é fácil também quando o espaço é algo conhecido, te mantém na zona de conforto - as pessoas que estariam lá, seriam pessoas minimamente interessadas em arte como eu, então, entre um sorriso e outro, as coisas se facilitariam para a aproximação. No terceiro dia de viagem decidi que iria para Belo Horizonte, peguei um ônibus que passava em intervalos de 5 horas - saí às duas e teria que estar no ponto dele em BH religiosamente às sete horas, pois era o último do dia. Fui. Andei pela cidade, dei uma volta, comi, fui no cinema, fui olhar livros ( que os mineiros separam a seção literária entre escritores brasileiros e escritores mineiros), e, com uma pontualidade digna de inglês, lá estava eu no ponto às sete, e lá estava o ônibus. No duro, a estrada para ir de BH para Córrego Ferreira, que era onde eu estava, era simplesmente incrível. Descia-se toda a serra, e lá de cima podia-se ver aquele mar de morros e umas cidadezinhas bem pequenas ali pelo meio. Era incrível e demorado, mas o incômodo se fazia insignificante diante da vista que se tinha do ônibus. Fui ficando embriagada de beleza, mesmo, nunca tinha visto nada igual, e foi escurecendo, e comecei a conversar com uma senhorinha, e anoiteceu, e eu ficava olhando a estrada, foi ficando mais escuro e já não dava pra ver nada direito, até que, depois de quase três horas, me dei conta de que havia perdido o ponto, e pior, não só o ponto como a cidade!  Devo ter feito uma cara de merda tão fenomenal, mais tão fenomenal que uma outra senhora começou a perguntar se estava tudo bem comigo. Bom, estava em um lugar no meio da Serra, não conhecia nada, não tinha pra quem ligar, minhas coisas estavam na pousada, o último ônibus era o que eu estava, não tinha como voltar a não ser a pé por uma estrada de terra com pouca iluminação, e no meio de um nariz fungado de choro não tinha como disfarçar que não, não estava tudo bem. Sei lá o que deu na cabeça dessa senhora, ela disse que podia me ajudar, que conhecia o lugar que eu estava e que podia me dar uma carona, mas antes teria que acompanhá-la a um compromisso inadiável. Merda por merda eu fui, e não é que o compromisso era o culto? Porra, justo um culto! Nem lembrava qual tinha sido a última vez que tinha visto uma missa, muito menos um culto e  surgiu então aquele ranço. Mas, como não tinha solução melhor, sentei no banco e comecei a escutar. Minto, muito mal disposta comecei a lamentar o infortúnio. Saí para andar em volta, mas, em respeito a senhora que me levara com tão boa intenção resolvi que ia sentar e ficar quieta. Do meu lado, havia um senhor, muito muito compenetrado no que dizia a pastora, acreditava mesmo, era bonito de olhar, nossa, aqueles olhos aguados de gente que parece que está realmente entendendo as coisas. Mas tinha grande dificuldade em procurar as passagens bíblicas, e para que ele não perdesse a compenetração dele, me ofereci para buscar. Primeiro quis rir, mas lembrei que eu sabia fazer aquilo - apesar de minha postura diante a religião ser crítica, fiz catequese e tudo bonitinho. E ele ficou feliz. Com isso só. Não sei o que me deu, que resolvi prestar atenção, finalmente, na pregação. E era bonita, tirando os excessos cometidos por um fervor religioso, era bem bonita, na verdade. Bonita demais. Falava sobre como temos que ter disciplina diante das nossas escolhas, e força, muita força, para seguir com estas adiante, pois é um processo inicialmente dolorido, mas que te transforma quando algo é alcançado. Para ter fé, nas coisas que se escolhe, e se doar, integralmente nelas. Pronto, era isso. E são coisas que não são difíceis de se ouvir por ai, é quase uma filosofia de bolso, mas foi ali, em uma igrejinha, no meio do mato, evangélica, onde fui parar totalmente por acaso, de má vontade e levada por uma desconhecida, que estas palavras finalmente surtiram efeito. Havia um muro real em mim, que naquele momento abriu uma fenda. Primeiro, porque me fez ter uma vergonha sincera do meu posicionamento no mundo, pois trabalho como arte educadora, que lida muitas vezes com diversos paradigmas, e hipocritamente os meus não haviam sido rompidos, pois, se não fosse uma situação dessas, dificilmente acharia que aquelas pessoas teriam algo para me acrescentar. Outra coisa que pegou forte foi a gentileza, e não era fingida. As pessoas estavam felizes de estar ali e poderem compartilhar - eles não pediram dinheiro, em nenhum momento. E no final, a pastora veio conversar comigo e fui tida como um milagre " a menina que se perdeu, porque Deus tinha um plano para ela - que ela ouvisse a palavra Dele". Sei lá. Eu achei engraçado, gente doidona, vê milagre em tudo. Mas com uma leve pontada no peito, a constatação de que talvez fossem muito melhores que eu, que não vejo muita coisa em nada. Chegou a hora de ir embora, e não é que quem me deu a carona foi o pastor? Ele colocava um pessoal todo dentro de uma Kombi velha, e ia distribuindo todo mundo pelo caminho. E fazia isso para eles irem no culto também, com uma alegria imensa, pois tinha fé na escolha deles. Era um senhorzinho alto, bem caipira, com chapéu e tudo que adorava tomar café. Começou a me contar como chegou naquele lugar, que era do Mato Grosso, e quando jovem mudara-se para São Paulo para tentar a vida como compositor sertanejo, e no meio do negócio viu algo, que não me disse o que era, que o fez ter certeza que Deus existia. E que, a partir daquele momento, decidiu que iria pregar, e como em São Paulo já haviam muitas igrejas, tentaria cumprir com sua missão em um lugar mais inóspito. Ele e a pastora, que vê milagre em tudo. Nossa, aquilo me deixou louca, de verdade. Me deixou na porta da pousada, me deu um abraço, e foi embora com sua kombi.
Não conto aqui a história de uma conversão. Realmente, a questão da religião me põe um pouco tensa sempre. Quando voltei de viagem, as primeiras vezes que contei essa história, a passava como uma anedota. Mas, sempre vinha do fundo uma vontade de chorar, e que não era triste. Era uma emoção, não sei ao certo. Eu não era um milagre, decerto que não. Eles foram pra mim.
Eu sinceramente demorei para digerir a coisa toda, mas alguma coisa depois do acontecido mudou seriamente em mim. No duro, eu acho que sou uma pessoa que deu muito errado em vários aspectos, e não falo isso com melancolia, tem algo de cômico em tudo isso.Mas desde então, tem alguma parte minha que entrou no eixo de mim finalmente. E ela não mexe, nem escapa, nem dói. A centelha divino que eu vivo falando para os outros, o universo que possui lógica própria, os encontros e desencontros que provém de uma espiral, tudo o que eu sempre falei e agora vejo, que não sei se confiava tanto, começaram a ser mais sinceros em mim. E olha, essa coisa de se perder pra se encontrar, pode ser verdade. Talvez exista um Deus mesmo, e existam milagres, talvez seja só acreditar mesmo, não custa muito. E daí se for invenção? A coisa parece toda mágica quando se acha que existe. Desde então, não me senti mais sozinha, ou aflição por isso, mesmo. Ás vezes só penso que não seria legal. Não sanei muitas coisas, mas abri a fenda no muro. Sei lá. Respondi ao medo da possibilidade de ter uma epifania ou uma catarse e não percebê-la. Não sei se há uma linha que separa o antes e o depois, mas um dia você acorda e o mundo está muito diferente, e você está cheio.
Eu queria voltar naquela igrejinha qualquer dia, mas, sinceramente, não faço a mínima ideia de como chegar lá.

domingo, 3 de fevereiro de 2013

Talvez, talvez
eu não seja o que você queira
mas, meu bem
não há nada
nada, em absoluto
que eu possa fazer por você
em relação à isso.
Posso te oferecer um cigarro, ou dois
enquanto você me olha
embaixo das flores do muro.
Mas, você entende, não?
que, eu
não posso ser nada
nada além daquilo que sou agora
escancarado na tua frente.
por você
só posso pedir
que goste de mim assim.

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

E lá estava eu, parada com o prato na mão procurando uma mesa, sozinha. O restaurante estava cheio, barulhento, então acabava que tínhamos que dividir a mesa com pessoas que não conhecíamos, pedir licença e todas essas coisas pra sentar enquanto elas conversavam com seus acompanhantes. E foi isso que eu fiz, caminhei por entre aquele mundo de gente, tudo por causa da fome, miserável fome, e agora tinha que  procurar um lugar vago. Um apenas, nem tinha que me preocupar de não me separar de ninguém, pois estava comigo, logo eu, que duvido de minha companhia, metida em um inferno tão formidável como este.
Lembrei então que tinha um par, tão solitário quanto eu. Sempre tenho um livro na bolsa, então sentei, coloquei meu prato na mesa e puxei o livro na cara,  lia no meio das mastigações. Devo admitir que estou virando uma solitária. Não sozinha, solitária, são duas coisas diferentes. Eu e o Hemingway- que ainda não tinha ido para a áfrica em seus acessos de solidão. Aqui, estava ainda apaixonado por uma pequena chamada Brett,  interessante mas tonta que sempre acabava casando com alguém que não gostava. Sempre, infernal essa Brett. Foi quando uma moça sentou na minha frente, e ai, realmente tive que parar para olhá-la. Não por ser sensacional, pois não era mesmo, mas porque também estava só, carregando o prato, procurando um lugar e pedindo licença. Sentou, logo ali na minha frente, e tinha uns tiques, piscava muito, olhava para todos os lados sem parar, batia os pés, tudo junto, tudo junto e engolia tudo rápido, que mesa esquisita, uma com o livro na cara e outra doidona que não para de se mexer. Estar solitário não é um problema, tem horas que o mundo realmente não quer interagir com a gente, e não há muito o que fazer além de se levar pra passear. A gente conversa, olha o mundo e se perdoa, porque não tem ninguém pra fazer isso por você, e ai é meio que obrigado, senão fica insuportável. Mas ninguém está livre de observações, então olhava para ela com vontade de rir de sua aflição, como provavelmente alguém poderia estar fazendo comigo. Não adianta, é assim que essa merda toda gira, a coisa é sentar em algum lugar e ser ciente da sua insignificância. No bom sentido sabe, se é que existe algum. Vai saber onde se vai parar, vira uma beberrona, vai caçar na áfrica, ou casa tem filhos e fica feliz. A coisa é: a escolha é solitária. Se pode ter tiques ou se conformar e ficar feliz com alguns encontros. Queria ter largado o livro nessa hora, e ter contado tudo isso para a moça da frente. Mas desisti da ideia, esse tipo de coisa é algo que se descobre, não dá pra dividir, ela que se vire, ou não. Talvez já saiba.
Levantei e deixei o prato na mesa. Sai com um estômago preenchido. Acho que não só o estômago.

segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

Não vou mais chorar por amores imperfeitos

Não vou mais chorar por amores imperfeitos
Pois, o que seria do mundo
da poesia
das terças modorrentas
sem seus despropositados deslizes?
sem os infinitos suspiros
ou o nó apertado da garganta
que faz e desfaz
tira o ar de mansinho
mas exita em sufocar no final.
Como ser retrato
espelho ingrato que não priva
nenhuma das marcas de quem sente e faz amor
espalhadas no corpo
do próprio tortuoso ser
amante e amado
sem estes imperfeitos amores?

domingo, 20 de janeiro de 2013

Eu vou voltar a ouvir músicas de amor

Eu vou voltar a ouvir músicas de amor, e talvez até ler uns poemas. Vou limpar o armário e pendurar de novo as roupas que gosto e deixei de usar por parecerem deslocadas, mas principalmente, vou voltar a ouvir canções de amor, sem torcer o nariz ou criticar, sem ressentir, sem magoar. Só vou ouvir, talvez cantarolar algumas palavras enquanto caminho pela casa arrumando tudo que, pela correria, pelo desajeito da vida deixei atirado. Vou voltar a ouvir Vinicius, o Tom, quem sabe até aquela banda dos irmãos e suas canções melosinhas. Vou distorcer a cara feia, jogar fora alguns bilhetes e reler tudo que escrevi afoita no meio da noite, tudo bem ridiculinho e bem apaixonado, me perdoar por não ter mandado, selar com um beijo e guardar entre os cadernos. Tomar um chá doce para desamargar, me pendurar pro lado de fora da janela e mandar um beijo pra casa da minha rua, pra amarela, pra azul e pra verde, assim, numa pose meio Fred Asteire, com, claro, uma música de amor no fundo, vou sim, vou voltar a ouvi-las e quem sabe um dia cantá-las de um jeito assim, bem natural, desse jeito que a gente canta. quando as coisas vão bem de novo.

sábado, 5 de janeiro de 2013

Chega em casa, vai até o quarto e tira, os sapatos e a roupa. Desfila pela casa com sua calcinha de renda preta, se olha no espelho, desliza os dedos pelo corpo e se desanima quando percebe os olhos devolvidos pelo reflexo. Senta na cadeira e beberica um resto de algo que ficou no copo em cima da mesa. Limpa o batom carmim na ponta da toalha - que ficará para sempre manchada de vermelho.
Levanta, acende um cigarro e senta na cadeira da sacada. Não tinha com o que se preocupar, pois quem a vestia era a própria noite, velava seu corpo com um tecido acinzentado, escurecia seus olhos, destacava as olheiras. Uma das mãos, a direita, pendurada sobre os braços da cadeira com o cigarro penso, e com a outra fazia pequenos afagos em seu peito inquieto, bem ali onde fica o externo. Gosta de saber os nomes das partes do corpo, esta. Fêmur, tíbia, omoplatas, sacro, crista ilíaca, ísquios, metacarpos, metatarsos, passava horas procurando por eles, conferindo parte por parte, sabe, ajuda nos movimentos. O cigarro queimou todo, as luzes vizinhas foram se apagando, todos foram dormir. O mundo segue mesmo quando insistimos em ficar no mesmo lugar. Elas acabam mesmo que continuemos.
E quem sabe o ponto exato em que elas se encerram?