quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

Considerações finais

" Por falta da eternidade
juntaram dez mil velharias.
Um bedel bolorento tira um doce cochilo, 
o bigode pendido sobre a vitrine
(...)
A coroa sobreviveu à cabeça.
A mão perdeu para a luva.
A bota direita derrotou a perna"

Wislawa Szymborska

Já se pode ouvir o som do verme no armário roendo velhas fotos. Se alimenta com perversa tranquilidade do anonimato de entes já não tão queridos, de pequenas histórias que nada mais são além de silêncio: velhas bocas cheias de terra: pequenos recados que já não são para ninguém.

- Somem os retratos e edificam-se os símbolos, como diria certo ditado.

Pode-se dizer se eram pobres, se tinham fome. Quais eram as roupas, quais eram as joias, quais eram as peles. Como a cidade mudou. Nada mais. Legados ao esquecimento eterno das gerações. Não se fala do amor, das mazelas, dos pequenos feitos, do doce-amargo da vida condizente a todos que estão. Tudo isso se recolhe, e some com o esvair do corpo: quais são os segredos que contam um saco de osso?


Foram nada. E ainda o são.

quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

O doutor disse para não fumar

- A senhorita fuma?
- Pouquíssimo.
-Pouquíssimo? Não existe pouquíssimo quando se fuma. Por acaso você sabe qual é a quantidade que cada organismo aguenta ingerir de tório no corpo? Pode ser assim (e fez um gesto com as duas mãos para indicar algo pequeno, parecido com parênteses), ou pode ser assim (fez o mesmo gesto que lembrava parênteses, mas aumentando o espaço). A gente nunca sabe, então não existe quantidade segura, senhorita. A gente nunca sabe.

Confesso que fiquei um pouco atônita. Por qual raio de motivo você acha que eu me importo com a quantidade de tório no meu corpo? Hein? Eu nem sei o que é tório, isso existe na tabela periódica? Senhor, eu era ruim de química, nossa, era um inferno, por isso nunca poderia ser médica, imagina, ficar falando qualquer besteira de elemento para assustar os outros “Olha, cuidado, tem muito rubídio no seu...pé (para não dizer outra coisa)”. Imagine só se faria alguma coisa dessa. Ô doutor, pergunta para mim da onde vem meu gosto por tabaco. Que me importa o tório? Eu respiro monóxido de carbono, sofro de radiação solar e de tantas outras, a televisão derrete o cérebro, minha comida tem agrotóxico, a carne tem excesso de hormônio, os bolinhos tem gordura trans, a comida é enlatada, industrializada, o salmão é truta, o leite tem soda cáustica! SODA CÁUSTICA! Minha mãe usa essa merda para limpar azulejo, e eu enfio tudo goela a baixo. Vamos correr para ser saudáveis, em meio desse MONTE DE CARRO E ESCAPAMENTOS DE FUMAÇA FEDIDA. Vou parar de comer carne, e comer soja. E por acaso os produtores de soja, de verdura, são melhores que os, que os da indústria da carne? Doutor, ninguém quer saber de nada. NADINHA, e você está me torrando por causa do tório? Aposto, deve olhar vacina, esse moooonte de remédio, prozac, valium e pensar “ que boniteza, que boniteza como caminha a medicina, o ser humano. Viva o Rutherford, viva os átomos, o raio x, a genética...” Mas vou te dizer uma coisa, doutor: Não há o que ser feito por mim. Eu já estou morrendo, ouviu? M-O-R-R-E-N-D-O. Todos os dias morro um tantinho mais. Meu corpo vai se desintegrando a cada minuto, as células falecem e no primeiro tufo de vento elas se espalham no ar e viram sujeirinha. Nhenhé, toda pelo ar, pedacinhos de mim, de você, de todos nós. Morro desde o primeiro golfo de respiração quando nasci. Nasci morrendo já. A coisa é: o quanto demora para o fatídico fim. Que pode ser um tantinho, ou um tantão. E não é o tório, doutor, é a porra da vida! E quando eu penso nisso, fico angustiada, claro, e a gente nunca fala dessas coisas numa roda de conversa, na verdade, pouco falo em uma roda de conversa, ai doutor, se soubesse como sou tímida. Pareço uma Matriuska dentro de uma alcachofra, fechadinha fechadinha. Então, na ânsia de não me expor, acendo um cigarro. Já percebeu como as pessoas não te exigem respostas quando você fuma, doutor? Não, porque você não fuma. Deve responder tudo, “nhenhé sei de tudo”. Mas eu não. Então, de vez em nunca, tenho que acender um cigarrinho, e fico quieta e ai eu fico em paz e com a boca ocupada o suficiente para não falar. Ainda mais quando tem que enrolar o fumo, o tabaquinho na seda, demooooora. Gosto muito de história, doutor, me sinto em tempos passados enrolando fumo, como se evocasse uma ancestralidade e tal, toda essa coisa. Mas no fim das contas, que te interessa? Vai me falar de novo do tório e que tório mata, mas tudo mata, doutor, sinto lhe informar. Doutor,  estou morrendo, ai meu paizinho, estou morrendo. Neste exato momento, vejo eclodir de meus poros o sutil barulho da morte. Eu queria acender um cigarro e assoprar na sua cara, doutor e te encher de tório também. Ninguém liga para nada doutor, não há muito meio de ser tão saudável, não aqui nessa cidade, sem dormir,  achatados, CANSADOS. Violência urbana, pombas cagando na sua cabeça. Doutor, não há remédio que cure uma escorregada no chão molhado com uma cabeça batendo na quina. Tanto faz, você mesmo disse ai, com suas mãos, que a gente não tem como saber. Tanto faz. Tudo vive e morre no seu tempo, certo ou não. Essa é a ironia do universo. Aposto que nem o universo sabe o que é tório. Só você, para ficar torrando o saco.

- Bom, possui alguma doença?
-Não doutor
-Bom, então está tudo bem com a senhorita, você está bem e apta para as suas atividades.
-Estou é?
-Sim, sim.
-Obrigada então, doutor.
-De nada, mocinha! E cuidado com o tório.


...Filho da puta.