- A senhorita fuma?
- Pouquíssimo.
-Pouquíssimo? Não existe pouquíssimo quando se fuma. Por
acaso você sabe qual é a quantidade que cada organismo aguenta ingerir de tório
no corpo? Pode ser assim (e fez um gesto com as duas mãos para indicar algo
pequeno, parecido com parênteses), ou pode ser assim (fez o mesmo gesto que
lembrava parênteses, mas aumentando o espaço). A gente nunca sabe, então não
existe quantidade segura, senhorita. A gente nunca sabe.
Confesso que fiquei um pouco atônita. Por qual raio de
motivo você acha que eu me importo com a quantidade de tório no meu corpo?
Hein? Eu nem sei o que é tório, isso existe na tabela periódica? Senhor, eu era
ruim de química, nossa, era um inferno, por isso nunca poderia ser médica,
imagina, ficar falando qualquer besteira de elemento para assustar os outros “Olha,
cuidado, tem muito rubídio no seu...pé (para não dizer outra coisa)”. Imagine
só se faria alguma coisa dessa. Ô doutor, pergunta para mim da onde vem meu
gosto por tabaco. Que me importa o tório? Eu respiro monóxido de carbono, sofro
de radiação solar e de tantas outras, a televisão derrete o cérebro, minha
comida tem agrotóxico, a carne tem excesso de hormônio, os bolinhos tem gordura
trans, a comida é enlatada, industrializada, o salmão é truta, o leite tem soda
cáustica! SODA CÁUSTICA! Minha mãe usa essa merda para limpar azulejo, e eu
enfio tudo goela a baixo. Vamos correr para ser saudáveis, em meio desse MONTE
DE CARRO E ESCAPAMENTOS DE FUMAÇA FEDIDA. Vou parar de comer carne, e comer
soja. E por acaso os produtores de soja, de verdura, são melhores que os, que
os da indústria da carne? Doutor, ninguém quer saber de nada. NADINHA, e você
está me torrando por causa do tório? Aposto, deve olhar vacina, esse moooonte de
remédio, prozac, valium e pensar “ que boniteza, que boniteza como caminha a
medicina, o ser humano. Viva o Rutherford, viva os átomos, o raio x, a
genética...” Mas vou te dizer uma coisa, doutor: Não há o que ser feito por
mim. Eu já estou morrendo, ouviu? M-O-R-R-E-N-D-O. Todos os dias morro um
tantinho mais. Meu corpo vai se desintegrando a cada minuto, as células falecem
e no primeiro tufo de vento elas se espalham no ar e viram sujeirinha. Nhenhé,
toda pelo ar, pedacinhos de mim, de você, de todos nós. Morro desde o primeiro
golfo de respiração quando nasci. Nasci morrendo já. A coisa é: o quanto demora
para o fatídico fim. Que pode ser um tantinho, ou um tantão. E não é o tório,
doutor, é a porra da vida! E quando eu penso nisso, fico angustiada, claro, e a
gente nunca fala dessas coisas numa roda de conversa, na verdade, pouco falo em
uma roda de conversa, ai doutor, se soubesse como sou tímida. Pareço uma Matriuska
dentro de uma alcachofra, fechadinha fechadinha. Então, na ânsia de não me
expor, acendo um cigarro. Já percebeu como as pessoas não te exigem respostas
quando você fuma, doutor? Não, porque você não fuma. Deve responder tudo, “nhenhé
sei de tudo”. Mas eu não. Então, de vez em nunca, tenho que acender um
cigarrinho, e fico quieta e ai eu fico em paz e com a boca ocupada o suficiente
para não falar. Ainda mais quando tem que enrolar o fumo, o tabaquinho na seda,
demooooora. Gosto muito de história, doutor, me sinto em tempos passados
enrolando fumo, como se evocasse uma ancestralidade e tal, toda essa coisa. Mas
no fim das contas, que te interessa? Vai me falar de novo do tório e que tório
mata, mas tudo mata, doutor, sinto lhe informar. Doutor, estou morrendo, ai meu paizinho, estou
morrendo. Neste exato momento, vejo eclodir de meus poros o sutil barulho da
morte. Eu queria acender um cigarro e assoprar na sua cara, doutor e te encher
de tório também. Ninguém liga para nada doutor, não há muito meio de ser tão
saudável, não aqui nessa cidade, sem dormir,
achatados, CANSADOS. Violência urbana, pombas cagando na sua cabeça.
Doutor, não há remédio que cure uma escorregada no chão molhado com uma cabeça
batendo na quina. Tanto faz, você mesmo disse ai, com suas mãos, que a gente não
tem como saber. Tanto faz. Tudo vive e morre no seu tempo, certo ou não. Essa é
a ironia do universo. Aposto que nem o universo sabe o que é tório. Só você,
para ficar torrando o saco.
- Bom, possui alguma doença?
-Não doutor
-Bom, então está tudo bem com a senhorita, você está bem e
apta para as suas atividades.
-Estou é?
-Sim, sim.
-Obrigada então, doutor.
-De nada, mocinha! E cuidado com o tório.
...Filho da puta.