segunda-feira, 16 de junho de 2014

A senhora do estacionamento

E tinha aquela senhora que a minha mãe sempre encontrava na rua, a roupa era maltrapilha mas a unha estava sempre bem pintada de um escarlate cintilante na mão preta. Até então não havia visto muitos negros na vida (era pequena, e havia ficado anos fora do país), então sempre ficava curiosa com as mãos com a palma branca, e a dela era cheia de anéis de prata carcumida. Ela era uma mulher esquisita, eu sempre me escondia atrás da minha mãe quando ela aparecia, e ela sempre aparecia. Estávamos na rua, eu tranquila no meu sorvete, eu tranquila no meu pãozinho, eu tranquila no meu chocolate e ela aparecia: Ô dona Rose! E era o fim, pois minha mãe sempre me fazia dar o que eu estivesse comendo para ela, para que ela levasse para o filho. E eu, como sempre fui um estômago cheio de fome me ressentia até os ossos de ver minha bisnaguinha indo embora. E lá ia ela toda feliz. Ela tinha um marido que era o seu Bastião, minha mãe sempre o chamava para fazer algum serviço em casa, fazia de tudo o homem: arrumava piso, pia, teto, mulher mal amada. Uma vez a senhora esquisita veio bater na porta de casa falando que ia matar o Bastião que havia embuchado uma menina. Pensei que era bem feito pra quem levava embora todas as bisnaguinhas. Anos depois, andando pela rua me veio o entendimento que esse embuchar tinha natureza diferente.  Aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaahhh eu vou matar o Bastião! E arrumava as tetas no sutiã. Aaaaaaaaaaaaaaaaaaai Dona Rose eu vou matar o Bastião! Matar o Bastião e roubar essa menina linda pra mim. Deus que me livre, pai nosso ave-maria ir embora com aquela mulher, ô cisma que tinha comigo. Eles moravam no estacionamento, quem mora no estacionamento? Eu, se ela me roubasse. E rezava ajoelhada "paizinho do céu não deixa ela me levar pro estacionamento, paizinho do céu que eu consiga comer meu lanche sozinha, paizinho do céu que ela não mate o seu Bastião, porque minha mãe grita quando a pia dá problema". Nunca soube o nome da Dona, mas todo mundo na rua a conhecia. Saía lá dos fundos do estacionamento com a mão na cintura, um lenço na cabeça e um largo sorriso com um dente faltando na parte de baixo. De vez em quando fumava, de vez em quando bebia pinga lá na padaria, de vez em quando sambava quando via a acadêmicos ensaiar na rua. Mas toda a reza feita deu certo, porque no fim das contas, ela nunca me roubou. Só me assistia passar com a minha mãe com um olhar afetuoso o qual nunca consegui entender se era realmente para mim, ou para a promessa de comida que eu significava. Ela falava dos filhos, mas nunca vi nenhum, minha mãe dizia para eu não perguntar, eu sempre fiz muitas perguntas: uma vez, na ânsia de ser roubada, pedi enfim para ver a tal da casa que eu ocuparia e minha mãe virou-me um tapa na bunda por ser curiosa. Quando perguntei do filho, foi na boca. Ainda bem que com o tempo ela parou de me bater, porque nunca deixei de fazer perguntas. O caso é que quando o estacionamento ficou maior, e sendo ocupado por mais gente, a tal da Dona sumiu e as pessoas da rua acharam de bem, já que a quase casa dela emporcalhava a vista da nobre rua do Tucuruvi. O Bastião, pelo que se soube morreu, e a senhora, algumas vezes tive a impressão de vê-la nos ensaios da escola de samba rodando na ala das baianas feliz da vida com a unha sempre escarlate. Mas sempre foi uma impressão, pois parecia que ninguém mais a via, ou só não ligavam mesmo.

O tal do filho, depois de muitos anos, apareceu na porta de casa: Ô dona Rose, que satisfação! Vim agradecer a senhora. E entregou um bolo dentro de uma assadeira amassada. Bolo de laranja, sem calda. Meu coração bateu dentro do peito atônito: Pessoas como Arquimedes entenderiam essa sensação, de ver uma pergunta de anos esclarecida em um segundo ínfimo, em uma batida de porta: ali estava a resposta de minha curiosidade infantil.

-E aquele pedaço de bolo devolveu todos os doces usurpados: estava bem bom.

sexta-feira, 6 de junho de 2014

Passagem

Olha: mais um.

era um travesseiro
cheio de cabelos
dela.
E mais outros pedaços
outras partes de corpo
espalhados pela cama.
Eram braços e pernas
emboladas
eram pele suada
um encontro de pelos
e a resistência inútil
dos cabelos que lhe escapavam
e povoavam o lençol
tingindo tudo de vermelho.

E olha que estavam assim meio down
em todos os idiomas
(a tristeza sempre latente
na ponta da língua)
e olha que eram assim
bem diferentes
(e tão iguais nas discordâncias)
e olha só: outro fio de cabelo,
escorrendo lânguido
pelo travesseiro.

É de pensar: ela dizia
é de puxar: ele dizia
é o atrito do encontro.
Viraram de lado
assim como fazem os românticos
e se fizeram companhia
em suas solidões.

quarta-feira, 4 de junho de 2014

Dora banguela

Ah que saudades da minha Dora. Adorada Dora, que saudades da minha Dora. Era o mantra matutino daquele senhor que passara pela vida dando Adeus aos seres amados. O golpe fatal foi a ida da Dorinha. Nunca a tinha chamado de Dorinha, nem gostava tanto dela assim quando estava viva: a Dora tinha uma irritante mania de se coçar o tempo inteiro e jogava a culpa na circulação ruim; a Dora lavava roupa e louça com o mesmo sabão, a Dora era meio porca, tanto que perdeu os dentes cedo por falta de escovar: a porca dizia que isso era coisa de propaganda americana e que nunca se escovou os dentes como no século XX. A coitada da Dora nunca estudou, era burra, mas aquela boca desdentada e fedida fazia milagres embaixo do lençol: nada como uma boa boca sem dentes para fazer qualquer homem virar os olhinhos. Ah que saudades da Dora, era uma menina quando a conheci e metia-lhe a mão por baixo da saia para vê-la ronronar que nem um bicho: a Dora nunca foi muito gente. Morreu um pouco quando foi tirada do mato, ficava olhando a janela feito ave empoleirada por horas e horas, nunca dava para saber o que pensava porque Dora não gostava muito de pensar. Sempre fazia perguntas descabidas como qual o sentido de viver da forma que se vive e como não se angustiar diante de tanto mundo. Que tanto mundo, Dora? Você é burra? E ele vinha e lhe mostrava o mapa: Não é tanto assim - e com o dedo traçava rotas em cima do mapa - Viu? menor que aquela manga em cima da mesa. Come manga Dora, que fiapo nenhum fica preso na sua boca banguela. E lá ia Dora feliz com a sua sorte descascar a manga. Como ficar na casa depois que Dora se foi? Dora era especial com seu vestidinho pobre de algodão, sua pele encardida, seus pés dançarinos pisando no quadradinho de grama no quintal. Antes de morrer pediu pra ver terra, e o velho levou um vaso. Dora se debulhou a chorar, queria terra. Ô mulher burra da boca de ouro. Ah Dora, se eu tivesse lavado seus cabelos, ah Dora se eu tivesse quebrado o concreto do pátio do quintal e tivesse plantado um pé de alecrim, ah Dora, como ficar nesta casa com tantos retratos e as manchas de sujeira que você nunca conseguiu, na verdade, nunca quis limpar? Dora dizia: É o tempo tomando espaço no móvel escuro; é o desgaste se fazendo presente na parede: a morte espiando, benzinho. Devia ter feito algo com a cabeça maluca da Dora, falava cada coisa aquela mulher! E ele amou cada dente que caiu, em segredo guardou todos e agora os carregava no pescoço em um colar. Um vizinho disse para ele: Reforma a casa! Pinta as paredes, troca as fotografias, arranja uma moça. Como explicar que moças possuem dentes? Enterrou o último de seus amores no cemitério central num caixão barato de madeira clara e detalhes de plástico prata. Dora nunca ligou pras riquezas, então não ia ser agora que ia gastar dinheiro com caixão. Tchau Dora, minha bem amada, o travesseiro ainda exala o cheio azedo da sua pele suada de pesadelos. Enterrou-a com todos os santinhos: a Dora adorava aqueles santos, mas não sabia rezar direito. 

Decidiu então reformar a casa, e como era muito esperto aquele velho, fez na casa o que fazemos com as grandes dores: sobrepôs cada azulejo com outro de gosto duvidoso, colocou papel de parede em cima de outro velho papel, pintou as cerâmicas do banheiro com rolo de tinta, quebrou o concreto do pátio até achar terra. E assim viveu, alguns poucos anos mais, sobrepondo pisos, paredes e cavando buracos no chão até perceber que a casa havia se achatado: assombrado concluiu que não haveria espaço para outra pessoa ali dentro e finalmente ficou em paz. Ah dorinha, todos esses anos, e agora entendo quando você dizia que azulejo era frio. Morreu em meio esse arroubo de lucidez no piso que era quase teto. A casa ficou muito tempo ali como um monumento a saudade que aos poucos não se soube de quem. Os vizinhos falavam de um velho excêntrico que um dia se pôs a colar azulejo para preencher espaço, mas era uma história desinteressante: inclusive, diziam, o piso original era mais bonito.