sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016

Acordei com aquele aperto de saudade, e, não muito diferente dos outros dias, saí correndo de casa tomando o café da manhã pelo caminho para não atrasar mais do que já costumo fazer. O metrô varia entre a descoberta de um livro novo carregado no colo e os fluxos de pensamento que escorregam rápido pela vista enquanto a paisagem ensolarada de fora, ou acinzentada do túnel, escorre contra a cabeça encostada no vidro. Hoje acordei com aquele aperto de saudade e, enquanto pensava em um, em outro, o trem brecou na estação Tiradentes e desligou todas as luzes, mergulhando-nos naquele escuro encardido de um vagão de trem mais velho do que eu: meu estômago afundou.
- Aguardamos a retirada de (pausa eterna) objeto da linha.
Era outro dia começando de novo. Não para todo mundo.
Recebi sua mensagem dois dias depois de ter chegado aos 24. Era de manhã quando o celular vibrou e estava lá, um áudio de quase 10 minutos esperando para ser ouvido. Claro que era você. Perto ou longe, ao vivo ou nos longos monodiálogos diante o microfone do whatsapp, sempre temos muito para falar. De mim, de você, da gente do mundo. Da gente. Sabe, eu também não tive muito que comemorar este ano, entendo perfeitamente a parte de não estar feliz com o que se é, ou que se está. E a celebração é genuína, ela acontece nos pormenores do cotidiano, até sozinho, até com uma pomba feiosa. Essa obrigatoriedade de comemorar o fim de um ciclo para o começo de outro. Outro qual? Fim de que? Acordei dois dias depois com a mesma angústia de uma semana antes. Você lembra como eu sou angustiada, não lembra? As nossas soluções pareciam tão perfeitas, o nosso mundo ficava tão bonito. Depois de você, me apaixonei pelo lilás e verde água, eu nunca liguei muito para cores até então. Engraçado o que a gente liga ou não liga ao longo da vida, comprida ou curta. Estou na fase dos pastéis, principalmente depois que reencontrei Renoir. Quando o vi pela primeira vez, decidi que gostava muito de pintar, mesmo com toda a preguiça que tenho de segurar um pincel. Descobri que gosto de Renoir por parecer que tudo dança em Renoir, as cores todas, as pinceladas todas, as moças todas. Queria ter essas cores. Vou pintar o cabelo para ver se fico mais feliz com quem eu sou. Mas sabe, eu ouvi de novo, e no fim a gente comemorou, comemoraram por nós. Alguém é feliz com o que somos, fui dormir intranquila com isso, juro para você. Algum dia a gente vai acordar e se celebrar? Eu tenho acordado com o som do tec tec da máquina de escrever nos últimos tempos, tenho uma gata que adora pisar nas teclas. A minha tristeza pode ser falta de sono, só falta de sono. Vou te mandar uma foto dela escrevendo, é engraçadinho. Não é super engraçado: é engraçadinho. Eu te celebrei, sabia? Rodopiei sozinha feliz por você que está no mundo. Uma volta e depois outra, que nem os ciclos, essa palavra que deram um significado redondo (como se essa fosse a única maneira de se renovar). O aniversário não parece muito pra gente mesmo, é mais um ano existindo para alguém. Para mim, o seu aniversário foi muito importante, apesar de sabermos que acordamos e deitamos sem sentir essa grande mudança chamada anos. Sentimos só quando o rosto já rachou demais, ou quando decidimos ser sérios demais. E depois de sérios demais decidimos relaxar: a minha dúvida: os anos colocam ou retiram a gravidade das coisas? Jovens graves para velhos leves. Eu sou feliz por quem você é, mesmo que não seja o que você imaginava de si. E só levantei por saber que eu alguém sente isso por mim também e sabe: o puto motivo, a gente nunca vai descobrir.

terça-feira, 4 de agosto de 2015

- Você sabe né, que ela não vai viver para sempre.
E ai eu não consegui olhar muito bem para a Mabôzinha depois disso. Mabôzinha é minha gata, recém-nascida e recém ganha, fofa para morrer. Existe uma reação engraçada até no ser mais carrancudo quando vê um filhote dando patada nas coisas, e nem o choro contínuo, miúdo e estridente é capaz de causar tanta irritação. É claro que eu sei que ela não vai viver para sempre, e respondi daquele meu jeito insuportável no qual viro os olhos para cima meio impaciente. É claro que eu sei (e essa afirmação veio um pouco mais baixa, como se quisesse deixar ela em segredo dentro de mim). E desde então, não consigo olhar muito tempo para a Mabô, e acho que ela não deve ficar muito no colo mesmo, e tem que aprender as coisas rápido, pois nosso tempo é rápido. E já projetei os próximos...14, 15 anos que ela vai viver comigo e vai morrer, e me assombro com a possibilidade de que ela vá acompanhar tanta coisa, e depois, não mais que de repente, já não acompanhe mais.
Não é bem o gato em si, entende? Mas fui apresentada à morte poucas vezes, e sempre de maneira muito tímida. Tenho uma avó que faleceu há poucos meses, mas que não a vi mortinha de tudo. Tenho uma gata que não faleceu sozinha, né, a gente sacrificou? (adoro como a ideia de sacrifício vem parar nas questões modernas, que forma de se livrar da culpa: a gente decidiu que era melhor que ela morresse, né, ninguém deu a gata em sacrifício de ninguém). E mais uns conhecidos de conhecidos. Tudo muito limpo, muito racional, como eu sempre entendi a morte: racional e óbvia. Mas ai, sabe, a mabôzinha. Mal nasceu e já viraram a ampulheta da coitada. Nasceu morrendo. E que mortes são essas também, não? As grandes mortes e as pequenas mortes que passam desapercebidas e silenciosas na desatenção às solas do sapato. Se o que piora a morte é o afeto, o que fazer? Existe alguma maneira de viver a morte? As psicocoisinhas diriam da elaboração do luto, o entendimento da perda, que enfim, é outro termo engraçado para ser usado: perder. O português é um idioma problemático, mas enfim. Acho que a gente se prepara para a morte do outro depois porque ninguém quer senti-la antes: que complicadas seriam as despedidas se vivêssemos na intermitência de uma tragédia. Mas a graça, é que quando enfim o vivo vira morto, todo mundo vem com aquela ideia de “eu senti”. É benzinho, claro que sentiu, porque a gente sente todos os dias a possibilidade. É que é isso né, a gente se distrai um pouco no aguardo até sermos pegos sem surpresa: ai a água bate na bunda, e todas as mensagens suicidas de como devemos aproveitar os dias como se fosse o último lotam nossas mídias sociais em discursos de enorme aprendizado. São breves, quase sempre, por termos que nos distrair de volta, depois, no nosso devaneio de eternidade, e ai, anedoticamente, voltamos a jurar nossas coisas eternas de 5 minutos. É que, tão camuflada, tão ignorada como é a morte, apesar dos desastres e infortúnios cotidianos, só cabe mesmo o assombro da constatação que sim, eu sei que ela vai morrer.

segunda-feira, 4 de maio de 2015

E um dia 
não mais que um dia 
já nem lembro se de sol ou nublado
(tanto faz o tempo lá fora)
já nem lembrava que sofria
e meu coração enternecido
parece que já previa
e arrumava a cama
para você deitar.

Palomares

Palomar: Palomas ao mar. Palavra de origem hispânica para denominar pomba. Palomar: Pombas ao mar. Seres que não são aptos ao nado: anatomia discutível: penas quilhas cloacas duas pataspés com garras para se apoiar. Observatório. Antes em galhos, agora na rede de fios elétricos. Palomas não são seres aquáticos. Palomas não são seres do mar. Palomas não são seres de grandes vôos. Palomas não são muitas vezes mais que incômodo: mas são revoadas. Palomar: verbo intransitivo, 1ª pessoa do indicativo, conjugação regular: a cada 25 dias certeiros pela manhã. Passível de conjugação em todos os pronomes: singulares e plurais. Ato de mergulhar sem ser apta ao mergulho; ato de atirar-se a água sem saber nadar; ato de se fazer rasante na quebra da onda; afundar-se superficialmente e ser levada para borda; mergulhos rasos; ato de Palomar. Flexiona-se muitas vezes como substantivo: comum.
Paloma observava as palomas palomando nos palomares.

segunda-feira, 30 de março de 2015

Máquinas de escrever não fazem notas de rodapé

Maceto o dedo contra a tecla manchando todo o papel de uma coloração cinza-azulado: letras trocadas, encavaladas pela máquina que resiste à violência com que imprimo cada palavra que atônita salta ao papel: a palavra bruta. Ah benzinho, é com essa mesma força que adoraria cravá-las em seu peito, marcar seu rosto de azul-rubi, afundar a carne de suas bochechas com os sulcos da marca metálica de uma máquina velha, coisas como: “não devo me poupar”. Poderia lhe explicar no canto da página de onde surge tal vontade, mas você sabe: máquinas de escrever não fazem notas de rodapé.

terça-feira, 3 de março de 2015

Amarelo

Eu não acredito em resiliência: de maneira nenhuma. E já não tenho saco para amores barrocos. Ou para platonismos, ou romantismos, ou qualquer tipo de sentimento retirado de livros: eu quero as entrelinhas dos poemas: os espaços cheios de silêncio: significativos entre uma palavra e outra, entre uma respiração e outra durante nossa pequena morte. Verbos intransitivos, tempos adverbiais: diria até pronomes possessivos. Amor concreto que nem pedra, tudo por não crer em resiliência: como poderia voltar a ser o que era, até o dado instante em que nos cruzamos no carpete áspero da cidade, do mundo: a força do acontecimento dos anos para que eu estivesse exatamente ali: a trança de uma entidade caprichosa brincando com a gente e nossos coraçõezinhos, tão desmedidos, tão carne amansada buscando pormenores felizes: como ser o que era, e dizer: posso voltar para mim? Se já não há mais mim, se me vou escapando pelos poros, se me derramo ao subir as escadas, se me digo Adeus a cada suspiro causado pelo você que se instalou nas minhas articulações. E fico explodindo em ânsia a todo minuto, em arroto de mariposa: a impaciência antítese do oráculo. Como ficar no papel, se já lhe lambi o céu da boca?

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

São versos espasmódicos os que me saltam agora, como se tivessem acordado de madrugada pelo som dos disparos no escuro: qualquer coisa como um estalido metálico anunciando o momento da largada, mas eu não corro: já não há joelho para longos tiros e nem fôlego para tão grandes distâncias em tão curto tempo. Só a anunciação: 
-Está atrasada. 
É que meu pulso nunca foi propriedade de relógio: tenho as horas, os dias, meses e anos marcados pela distância dos afetos: a natureza do meu tempo parte de outra grandeza: a do detalhe. E nunca fui dada às grandes corridas, principalmente quando não sei para qual lado corro: sempre para o lado contrário: sempre uma corrida de um. Por vezes me venci, mas me alcançaram os resíduos perdedores, todos chegando aos poucos, colando de volta, alongando os tornozelos: eles me encontraram. Então, versos que se espreguiçam na beira da janela procurando a origem do estampido são os que fervilham agora, em uma vontade de ignorância, vontade de giro: vontade de só seguir pé direito e pé esquerdo em uma sequência infinita sem pressa contra o chão. Eu quero tanto um tempo advérbio.

terça-feira, 30 de dezembro de 2014

sem título

Mas o que se pode fazer quando o amor é negado? Cabe-nos apenas, resignados, conviver com a ausência aterradora, e a espera de um dia acordar e sentir retirado o pedregulho de cima dos órgãos, pois ás vezes parece mesmo que vamos sucumbir em uma espécie de afogamento seco. Mas passa. É um erro comum atribuir eternidade a todo tipo de afeto e seu reverso, e se, em alguma instância a eternidade existe para nós, seres vulgares, está impressa em algum aparato da memória do mundo, mas sujeita ao desacordo e trânsitos que são inerentes ao próprio, sabe, mundo. Ao amor negado, só resta a melancolia, quase mortal, mas que se dissipa, a qualquer momento: indefinido. E quando acontecer, aquele choro sentido vai ser lembrado com certa graça, como um evento distante, um eu descolado. E a ausência, caracteristicamente irresolúvel, cede um pouco de seu espaço, sabe, para o amor: o novo.

segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

Pavanas

5,6,7,8
Meio giro/encontro
demi-plié
sorriso.

Meu e seu

Port de Bras
quarta fechada
erro: mãos no rosto
Repreensíveis no palco
no palco, mas ali.
Deram-se as mãos?

Não.

5,6,7,8
Um pas de deux mal ensaiado
marcações de lugar
Fouette/nos olhos/peso peso peso peso
Despacito
Alguém disse: 5,6,7,8
Attitude: não só nas pernas
Convoca o corpo: Abdômen abômen abdô, abaixa o externo! abaixa o externo! abaixo o externo!

A B A I X A O E X T E R N O

Abaixa. Mas eu te vi. AA1 BB1
Ritmo: 5,6,7,8
((((((((((((golfadas de ar: )))))))))))))
Era quase emocionante, juro que sim
SABE AQUELA COISA, de ritmos internos?
Pulsações cardícadas/retorno intravenoso
escapam décimos de segundo 5,6,7,8
imperceptíveis
o eram, eram sim.


Tan dan dan Tan dan dan
valsa de cravo
pas de Boureé, sempre para a esquerda
E então:



(por ora sentemos, fiquemos sem os sapatos)
((Só por ora,sentemos e fiquemos sem os sapatos))
(((instantes só, para não sujarmos o chão de rua)))
((((e de avenidas e de alamedas desbotadas de outono))))
(((((é mais suave:5,6,7,8)))))


Ninguém me disse mas essa é a contagem errada.

quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

Conversas de celular

Ela: do que chamar?
Ele: pinto
Ele: pau
Ele: pica
Ela: caralho
Ela: Nossa!
Ele: quanta graça!
Ela: Que obsceno
Ela: Não entendo
Eles e Elas: O que?
Ela: E se é inominável?
Ele: então os dois o são

Silêncio

Ela: o que se pode dizer?
Ele: Tem quem se ofenda
Ele: o meu sempre foi assim
Ela: Assim como?
Ela: Assim com nome?
Ela: Assim do jeito que vi?
Ele: Assim
Ele: do que falam?
Ela: de inomináveis
Ele: Dos que saltam pra fora
Ela: Dos que são pra dentro
Ela: E se disser: racha?

Silêncio

Risos

Ele: Que obsceno!
Ela: quanta ousadia
Ela: colocar nome?
Ele: dizer o nome?
Eles e Elas: PRONUNCIAR
Ela: assim, audível
Ela: assim, legível
Ele: quanta graça!
Ele: meu corretor corrige as falhas
Ela: de português?
Ela: das coisas: buceta vira brusqueta
Ele: Corrige o que tem que ser corrigido
Ela: o que não deve ser falado
Ela: nem escrito
Ele: nem nomeado: só no escuro

Eles e Elas: Olhem só! Achamos fotos!
...baixando arquivos.

quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

Viagem de ônibus

Não subi isenta naquele dia no ônibus que me traria de volta: e subi os degraus com um tom cômico de quem quer virar e sair correndo, sabe? correndo numa ânsia ÂNSIA de gritar, gritar muito uma alegria, um êxtase violento rasga-pele um riso alucinado e rodar e rodar e rodar e rodar e rodar mas não rodei, nem gritei só subi com vontade de descer e sentei do lado de um cara que não era o cara que eu queria sentar do lado, era um cara qualquer, e naquele momento qualquer um que sentasse não seria quem eu queria que sentasse porque ELE estava lá em alguma parte rodando e eu que quis tinha então que aguentar esses qualquer um que mandam mensagens avisando que estão voltando, li tudo, meticulosamente e corrigindo as sentenças daquele português que não era o português que tanto me fazia tremer de felicidade, a boca que tanto dizia coisas que me atrapalhavam: justo eu que nunca me atrapalho, estava ali querendo descer, o tempo inteiro, quase disse para o motorista parar, mas iria atrapalhar a viagem de outros 30 e tantos que queriam mesmo voltar, e eu não atrapalho, devia só voltar, quieta e feliz, rever minha cama e ouvir minha música favorita de todos os dias que não pude ouvir, ou não precisei: na verdade esqueci, e não lembro qual era a minha música favorita agora: sei só que nunca odiei tanto a estrada e quis que o ônibus tombasse pra eu sair correndo, sei lá por qual caminho, quais são os caminhos que nos levam pra casa? Adeus, e lá em casa alguém entenderia se dissesse que lá não é mais lá, porque eu quis descer do ônibus e quis me plantar na rodoviária como aqueles personagens de filme que esperam alguém vir buscá-los e tomam um café quente, que eu nunca tomaria pois odeio café? mas nesse momento até este sacrifício valeria: o café seria doce, e eu repetiria comigo é doce, é doce e é doce, sem saber o que era enfim, tão doce que me valesse os centavos gastos em um prazer de assistir o ônibus ir embora sem mim: olha lá onde eu não estou, o coração palpitando forte acenando para o banco vazio. Mas não foi o que aconteceu: subi, sentei e fui, sem estar isenta, com um velho conhecido entre as mãos, o burburinho das mil mariposas invisíveis, isso que há muito não se apresentava, que ressurge sempre sem nome: ou que apenas não ouso falar, carregado entre o umbigo e a coxa, fazendo cócegas que dão vontade de chorar baixinho com um meio sorriso para não o acordar, o cara do lado que estava sim muito feliz por ter subido no ônibus. Sussurrei no seu ouvido, entende? Para compartilhar qualquer coisa, que queria ter descido, mas acho que ele não se importou.

segunda-feira, 17 de novembro de 2014

Cabelos

Doía naquele ponto de sempre, na lateral direita do crânio, meio atrás do olho querendo escapar para a orelha (ou pelo menos era assim que tentava explicar para os muitos médicos quando lhe pediam para localizar a dor (( certa vez lhe dispuseram até um crânio, e pediram que cravasse com uma agulha a parte do cérebro que parecia doer, mas não lhe pareceu lógico que fosse algo no cérebro, em definitivo)), e incerta respondia, meio débil: entre olho e a orelha). Como se o bumbo de uma sinfonia rugisse dentro da caixa craniana, tentava se distrair do mal estar tão conhecido, esticando com as pontas dos dedos um cacho um tanto ressecado de seu cabelo que já não se entendia loiro-ruivo-castanho. Achava, com uma ingenuidade sincera, que seus cachos eram fruto de sua mente enrolada, e por isso seu cabelo nascia da forma que nascia: pensamentos revoltos, elétricos e espiralados, impossíveis contra qualquer pente fino. Sentia quando iam nascer, os fios, e lhe irrompiam da cabeça como se estivessem se empurrando e, lânguidos, se enroscassem com outros no seu mar de ideias confusas, que, quando sucumbiam à força do mundo, despencavam cadavéricos no chão, já não tão enrolados: retos em alguma certeza que foi abandonada: nunca olhou para trás, a vassoura de palha empurra tudo pra fora junto com o pó (mas são sombrios os fios que insistem em aparecer durante a manhã depois de um sonho intranquilo, em cima do travesseiro). De resto, pacientemente esperava que a dor passasse, e nunca disse para os doutores, mas tinha certeza que sua dor era disso, dos fios se empurrando, agora, o que era esse fio, ou fios, mechas inteiras que lhe faziam doer exatamente nesse ângulo de encontro entre olho e orelha, vista e ouvido, entre a enxerga e a escuta...Sabia que o lado direito cuida de qualquer coisa relacionado a, o que mesmo? Lado simbólico? Religiosité? Mas não era uma mulher (?) uma mulherzinha (?), uma moça (?) uma

- garota

uma garota da lógica?

: Tinha resposta pra tudo, mesmo que seus fios denunciassem a incongruência de seus pensamentos. Só não tinha pra tal da dor que insistia, religiosamente, em pulsar, como se quisesse abrir espaço no crânio com um martelo, bem ali, entre o olho e a orelha. Chegou a fantasiar que era uma mariposa, com o negrume do mundo nas asas, que estava se empurrando do casulo-osso formada pelas sinapses, pronta para debandar, uma grande mariposa negra saindo dos cabelos, ia pousar leve, ruflando as longas asas anoitecidas, uma noite sem ponto de luz (talvez um carrapato de strass apenas, preso por um breve acaso do mundo) fazendo uma saudação. Mas isso não faz sentido, assim como as pílulas de Frei Galvão que tomou antes de dormir, três de uma vez só, o papel-pílula-oração, e agora estava ali, com a cabeça doendo no ponto entre a vista e o ouvido, com overdose de pílula benta: sê cuidadoso, pecador, com seus pensamentos. Santa misericórdia, como acreditar em papel escrito: seja ele do Frei, do Freud ou do Rimbaud.

A essa altura, já virava o rosto contra a parede, fingindo fazer graça. É que doía,naquele pontinho entre a enxerga e a escuta, uma vontade de cegueira e surdez. Ou o contrário?