terça-feira, 30 de dezembro de 2014

sem título

Mas o que se pode fazer quando o amor é negado? Cabe-nos apenas, resignados, conviver com a ausência aterradora, e a espera de um dia acordar e sentir retirado o pedregulho de cima dos órgãos, pois ás vezes parece mesmo que vamos sucumbir em uma espécie de afogamento seco. Mas passa. É um erro comum atribuir eternidade a todo tipo de afeto e seu reverso, e se, em alguma instância a eternidade existe para nós, seres vulgares, está impressa em algum aparato da memória do mundo, mas sujeita ao desacordo e trânsitos que são inerentes ao próprio, sabe, mundo. Ao amor negado, só resta a melancolia, quase mortal, mas que se dissipa, a qualquer momento: indefinido. E quando acontecer, aquele choro sentido vai ser lembrado com certa graça, como um evento distante, um eu descolado. E a ausência, caracteristicamente irresolúvel, cede um pouco de seu espaço, sabe, para o amor: o novo.

segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

Pavanas

5,6,7,8
Meio giro/encontro
demi-plié
sorriso.

Meu e seu

Port de Bras
quarta fechada
erro: mãos no rosto
Repreensíveis no palco
no palco, mas ali.
Deram-se as mãos?

Não.

5,6,7,8
Um pas de deux mal ensaiado
marcações de lugar
Fouette/nos olhos/peso peso peso peso
Despacito
Alguém disse: 5,6,7,8
Attitude: não só nas pernas
Convoca o corpo: Abdômen abômen abdô, abaixa o externo! abaixa o externo! abaixo o externo!

A B A I X A O E X T E R N O

Abaixa. Mas eu te vi. AA1 BB1
Ritmo: 5,6,7,8
((((((((((((golfadas de ar: )))))))))))))
Era quase emocionante, juro que sim
SABE AQUELA COISA, de ritmos internos?
Pulsações cardícadas/retorno intravenoso
escapam décimos de segundo 5,6,7,8
imperceptíveis
o eram, eram sim.


Tan dan dan Tan dan dan
valsa de cravo
pas de Boureé, sempre para a esquerda
E então:



(por ora sentemos, fiquemos sem os sapatos)
((Só por ora,sentemos e fiquemos sem os sapatos))
(((instantes só, para não sujarmos o chão de rua)))
((((e de avenidas e de alamedas desbotadas de outono))))
(((((é mais suave:5,6,7,8)))))


Ninguém me disse mas essa é a contagem errada.

quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

Conversas de celular

Ela: do que chamar?
Ele: pinto
Ele: pau
Ele: pica
Ela: caralho
Ela: Nossa!
Ele: quanta graça!
Ela: Que obsceno
Ela: Não entendo
Eles e Elas: O que?
Ela: E se é inominável?
Ele: então os dois o são

Silêncio

Ela: o que se pode dizer?
Ele: Tem quem se ofenda
Ele: o meu sempre foi assim
Ela: Assim como?
Ela: Assim com nome?
Ela: Assim do jeito que vi?
Ele: Assim
Ele: do que falam?
Ela: de inomináveis
Ele: Dos que saltam pra fora
Ela: Dos que são pra dentro
Ela: E se disser: racha?

Silêncio

Risos

Ele: Que obsceno!
Ela: quanta ousadia
Ela: colocar nome?
Ele: dizer o nome?
Eles e Elas: PRONUNCIAR
Ela: assim, audível
Ela: assim, legível
Ele: quanta graça!
Ele: meu corretor corrige as falhas
Ela: de português?
Ela: das coisas: buceta vira brusqueta
Ele: Corrige o que tem que ser corrigido
Ela: o que não deve ser falado
Ela: nem escrito
Ele: nem nomeado: só no escuro

Eles e Elas: Olhem só! Achamos fotos!
...baixando arquivos.

quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

Viagem de ônibus

Não subi isenta naquele dia no ônibus que me traria de volta: e subi os degraus com um tom cômico de quem quer virar e sair correndo, sabe? correndo numa ânsia ÂNSIA de gritar, gritar muito uma alegria, um êxtase violento rasga-pele um riso alucinado e rodar e rodar e rodar e rodar e rodar mas não rodei, nem gritei só subi com vontade de descer e sentei do lado de um cara que não era o cara que eu queria sentar do lado, era um cara qualquer, e naquele momento qualquer um que sentasse não seria quem eu queria que sentasse porque ELE estava lá em alguma parte rodando e eu que quis tinha então que aguentar esses qualquer um que mandam mensagens avisando que estão voltando, li tudo, meticulosamente e corrigindo as sentenças daquele português que não era o português que tanto me fazia tremer de felicidade, a boca que tanto dizia coisas que me atrapalhavam: justo eu que nunca me atrapalho, estava ali querendo descer, o tempo inteiro, quase disse para o motorista parar, mas iria atrapalhar a viagem de outros 30 e tantos que queriam mesmo voltar, e eu não atrapalho, devia só voltar, quieta e feliz, rever minha cama e ouvir minha música favorita de todos os dias que não pude ouvir, ou não precisei: na verdade esqueci, e não lembro qual era a minha música favorita agora: sei só que nunca odiei tanto a estrada e quis que o ônibus tombasse pra eu sair correndo, sei lá por qual caminho, quais são os caminhos que nos levam pra casa? Adeus, e lá em casa alguém entenderia se dissesse que lá não é mais lá, porque eu quis descer do ônibus e quis me plantar na rodoviária como aqueles personagens de filme que esperam alguém vir buscá-los e tomam um café quente, que eu nunca tomaria pois odeio café? mas nesse momento até este sacrifício valeria: o café seria doce, e eu repetiria comigo é doce, é doce e é doce, sem saber o que era enfim, tão doce que me valesse os centavos gastos em um prazer de assistir o ônibus ir embora sem mim: olha lá onde eu não estou, o coração palpitando forte acenando para o banco vazio. Mas não foi o que aconteceu: subi, sentei e fui, sem estar isenta, com um velho conhecido entre as mãos, o burburinho das mil mariposas invisíveis, isso que há muito não se apresentava, que ressurge sempre sem nome: ou que apenas não ouso falar, carregado entre o umbigo e a coxa, fazendo cócegas que dão vontade de chorar baixinho com um meio sorriso para não o acordar, o cara do lado que estava sim muito feliz por ter subido no ônibus. Sussurrei no seu ouvido, entende? Para compartilhar qualquer coisa, que queria ter descido, mas acho que ele não se importou.

segunda-feira, 17 de novembro de 2014

Cabelos

Doía naquele ponto de sempre, na lateral direita do crânio, meio atrás do olho querendo escapar para a orelha (ou pelo menos era assim que tentava explicar para os muitos médicos quando lhe pediam para localizar a dor (( certa vez lhe dispuseram até um crânio, e pediram que cravasse com uma agulha a parte do cérebro que parecia doer, mas não lhe pareceu lógico que fosse algo no cérebro, em definitivo)), e incerta respondia, meio débil: entre olho e a orelha). Como se o bumbo de uma sinfonia rugisse dentro da caixa craniana, tentava se distrair do mal estar tão conhecido, esticando com as pontas dos dedos um cacho um tanto ressecado de seu cabelo que já não se entendia loiro-ruivo-castanho. Achava, com uma ingenuidade sincera, que seus cachos eram fruto de sua mente enrolada, e por isso seu cabelo nascia da forma que nascia: pensamentos revoltos, elétricos e espiralados, impossíveis contra qualquer pente fino. Sentia quando iam nascer, os fios, e lhe irrompiam da cabeça como se estivessem se empurrando e, lânguidos, se enroscassem com outros no seu mar de ideias confusas, que, quando sucumbiam à força do mundo, despencavam cadavéricos no chão, já não tão enrolados: retos em alguma certeza que foi abandonada: nunca olhou para trás, a vassoura de palha empurra tudo pra fora junto com o pó (mas são sombrios os fios que insistem em aparecer durante a manhã depois de um sonho intranquilo, em cima do travesseiro). De resto, pacientemente esperava que a dor passasse, e nunca disse para os doutores, mas tinha certeza que sua dor era disso, dos fios se empurrando, agora, o que era esse fio, ou fios, mechas inteiras que lhe faziam doer exatamente nesse ângulo de encontro entre olho e orelha, vista e ouvido, entre a enxerga e a escuta...Sabia que o lado direito cuida de qualquer coisa relacionado a, o que mesmo? Lado simbólico? Religiosité? Mas não era uma mulher (?) uma mulherzinha (?), uma moça (?) uma

- garota

uma garota da lógica?

: Tinha resposta pra tudo, mesmo que seus fios denunciassem a incongruência de seus pensamentos. Só não tinha pra tal da dor que insistia, religiosamente, em pulsar, como se quisesse abrir espaço no crânio com um martelo, bem ali, entre o olho e a orelha. Chegou a fantasiar que era uma mariposa, com o negrume do mundo nas asas, que estava se empurrando do casulo-osso formada pelas sinapses, pronta para debandar, uma grande mariposa negra saindo dos cabelos, ia pousar leve, ruflando as longas asas anoitecidas, uma noite sem ponto de luz (talvez um carrapato de strass apenas, preso por um breve acaso do mundo) fazendo uma saudação. Mas isso não faz sentido, assim como as pílulas de Frei Galvão que tomou antes de dormir, três de uma vez só, o papel-pílula-oração, e agora estava ali, com a cabeça doendo no ponto entre a vista e o ouvido, com overdose de pílula benta: sê cuidadoso, pecador, com seus pensamentos. Santa misericórdia, como acreditar em papel escrito: seja ele do Frei, do Freud ou do Rimbaud.

A essa altura, já virava o rosto contra a parede, fingindo fazer graça. É que doía,naquele pontinho entre a enxerga e a escuta, uma vontade de cegueira e surdez. Ou o contrário?


quinta-feira, 30 de outubro de 2014

Aos navegantes

E agora me pego com água transbordando dos olhos, algo parecido com choro mas que não o é: é marejamento, a prática de limpeza que extirpa por todos os orifícios o que insistia em não abrir espaço: é diferente do choro, pois é como se o choro lidasse com algo que ainda está colado, e esse marejamento lida com o que já descolou (se o olho fosse do avesso daria para enxergar que a ausência deu lugar a qualquer coisa espacial vibrátil que não espera mais nada e se crê, um pouco pretensiosa talvez, suficiente do seu grande nada: fica dobrando as bordas do abismo para fazê-lo menor. Por fim, coloca-o no bolso e cantarola Chopin engasgando nas notas difíceis). Os romanos tinham um hábito, e diga-se de passagem os romanos eram um povo engraçado (não só os romanos, tinha mais gente engraçada na história do mundo) os romanos (mas creio não ser exclusividade), os romanos (nunca sei se romanos ou Romanos, e de quais (R)romanos falo, pois, tinham os que eram romanos e os que foram conquistados que talvez fossem menos romanos ((há uma escala de romanidade?)), como os da Galícia, por exemplo) os romanos tinham uma coisinha chamada  de lacrimatório, no qual marejavam ou choravam dentro e o abandonavam nas sepulturas de quem fora dar uma volta do lado de lá. Uma vez me deparei com um destes em um museu quando pequena, e achei que guardavam as lágrimas para temperar comida: havia algo de boticário naqueles vidrinhos, mas não entendia que provinham, em grande parte, não do tempero, mas da destemperança: por achar isso, experimentei chorar sobre o prato de comida uma vez e senti as tripas revirando da angústia que voltava pra casa: a casa da qual havia sido expulsa. No fim, entendi que, chorando ou marejando, as lágrimas são para o abandono: vide que despencam em um movimento suicida e espatifam-se nas mais variadas superfícies, manchando papéis de cartas, legitimando o infortúnio da despedida ou da desmedida: a voracidade com que devoramos nossos afetos: ‘ai de mim’ ressoa a boca e umedece os fundilhos de quem lê. Mas digo tudo isso porque hoje meus olhos marejam, e não choram, marejam em uma enxurrada líquida e sem peixes sentindo descolar, descosturar, desatar, desmanchar, desabotoar e tudo o que é inverso ao que o verbo se propõe, todos os excessos que carrego como uma roupa fora de estação. E como tudo o que rompe é dolorido (há melancolias tão físicas quanto um quebrar de costelas), nesse exato momento me pego marejando o oceano interno (espero o momento de chegarem os seres abissais) e assisto evaporar gota por gota do que na garganta parecia tão sólido, erro comum: confundir o estado das coisas.  Sinto que no meio disso tudo houve algo de choro, mas se me escapou. Por ora marejo.



Caso alguém escorregue em mim derramada por ai, é que navego de dentro pra fora.

sexta-feira, 17 de outubro de 2014

O teatro da memória

Tenho uma tia, muito querida, que adorava ensinar essas pequenas/imensas coisas da vida. Ensinou até os dias que pôde: não que a morte a tenha levado de braços dados para qualquer lugar inférnico, mas acho que em dado momento da vida, houve o ensejo de parar e não fazer mais nada além de ensinar a si mesma: são esses equívocos da memória.
Detalhista,talvez fosse a palavra maior para descrever a tia Norma: detalhista. Enxergava além da miopia cotidiana e possuía, sabe? Alguma lente mágica que captava coisinhas desapercebidas nos outros e até mesmo nos espaços: a falha do dente, a migalha de pão, o esmalte comido na ponta da unha. Nada assim, metafísico: era na gente mesmo, os pormenores. E repetia com a sabedoria de um gato quando olha a janela que eram nessas falhas que se podia captar a falta de caráter (sempre desconfiei do que ela realmente queria dizer com isso). Dizia sempre, que tínhamos que prever as olhadas furtivas e estarmos sempre preparados para surpreender, para criar assim certa graça para quem olha. Levantava-se majestosa e na meia volta que dava com o corpo, dava para espiar um band-aid colado no cotovelo, cheio de bichinhos. Logo nosso olhar se encontrava de volta e me presenteava com uma piscadela cúmplice, como uma criança travessa que esconde o doce dentro do armário. As unhas, sempre cor de areia, mas em uma, especialmente, uma listra escarlate. Na blusa, o ponto ápice de sua aparência, um melancólico botão costurado, único na imensidão do tecido que lhe descia até os quadris. Mas o melhor para mim, e meu estômago se revirava para tal momento, era o tal do brilho que ela passava no colo. Esparramava glitter, purpurina, ou sei lá que era aquilo, e arrematava com uma gota de perfume. Retirava-se cintilante pela porta deixando aquele rastro de luz artificial pelo caminho, e eu, pequena, me encolhia na poltrona da sala da minha vó, ansiosa para o momento do retorno. Horas sentadinha para o momento em que visse girar a maçaneta, e uma tia Norma cansada da noite apareceria risonha arrancando a blusa no meio da sala, os seios já flácidos derrubando o remanescente de brilho no chão: e caíam como qualquer coisa mágica, girando em órbita no mamilo que resistia cansado à gravidade, pousavam leves no chão empoeirado que ela havia esquecido de varrer. Era um espetáculo.

Explanação

E é porque havia muita gente entre eu e o outro que a espinha dorsal enrijecia como que anunciando a chegada do inverno; e é porque haviam murmúrios escapando pelas rachaduras da sala de estar para o apartamento vizinho - que se punham atentos às inundações secreciosas: escapando de sistemas que convocam o corpo em seu todo - que se fez um abrigo embaixo dos lençóis onde a claridade bate à porta da trama de algodão e se vê obrigada a dar de ombros, a iluminar qualquer esconderijo menos banal como um canto, onde as arestas se beijam em suas perfeitas proporções; e é porque as curtas distâncias entre as casas, ruas, bairros e cidades reajustam-se em medidas incompreensíveis as quais escadas lhe empurram pra cima baixo seu calcanhar sujo: negando-se a amparar o peso, que termina à margem de um salto no escuro: um mergulho em caixas de areia. E é por isso que tosse com a garganta arranhada das mil vozes-espinhos que escalam os tubos digestivos-respiratórios ansiosas para aflorar na prometida primavera, cuspindo pétalas púrpuras de flores que já murcham pela espera; e é por isso que penteia-se na esperança de que fio a fio que se solta, vá desnudando a cabeça branca da cascata que esconde o rosto que já mostra os sinais dos primeiros vincos, consequência da frágil construção de seu lirismo, uma docilidade empalagosa, incapaz de lidar com a força do mundo: cavoca-lhe o ventre com a delicadeza de uma peste que espera o momento certo de estourar desavergonhada de sua mórbida obra; e é porque havia muita gente entre o outro e eu que distorceu as imagens do encontro em seu jardim de espelhos.

terça-feira, 9 de setembro de 2014

O dia que eu briguei com um mendigo por causa de uma cadeira

Ele nem era tão mendigo assim, caso contrário, uma centelha de bom senso teria me invadido naquele momento do mundo em que o vi carregando a minha cadeira em cima da carreta improvisada. O que ele não queria entender, o egoísta, é que, se ele tivesse me deixado ficar com uma, UMINHA, ele teria mais cinco cadeiras para ser feliz! Mas quis levar tudo, o troglodita malfeitor, e me deixou ali na calçada tristonha a sonhar com espaldares trabalhados e assentos de couro. Era uma cadeira daquelas que a gente só vê no lixo mesmo, quando alguém se cansa de guardar velharia e troca por uma de design mais arrojado, sabe, modernoso (tenho uma vizinha que adora falar modernoso, se sente super modernosa falando modernoso) e nem se importa de jogar tudo fora. Era uma tarde ensolarada quando as encontrei ali na Rua Noruega, no cafona e equivocadamente rico bairro do Jd. Europa. Estava ali nas minhas andanças trabalhais fotografando a casa dos ricos pra falar mal deles depois (atividade divertidíssima: engajar-se a denunciar o mal gosto estilístico da velha elite que, inconscientemente copiamos adquirindo a versão mais barata e ridícula nas lojinhas do bairro: no meu caso, no lixo), quando as vejo: recém abandonadas perto da lixeira de uma casa que não se podia ver o fronte, pois era religiosamente guardada por muros, trepadeiras e um portão descomunal, cômico e desnecessário em sua bestialidade considerando uma calçada tão curta; sua madeira reluzia engordurada aos raios de sol, o estofado de couro arranhado, preso por tachinhas de metal. A câmera fotográfica pesando na minha mão, o rebuliço das borboletas do estômago, atirei-me sobre elas como nunca me atirei em cima do ser amado, a perfeição de um ângulo de 90º entre coluna-bacia-fêmur. Suburbanamente comecei a bater palmas diante o portão quimérico, que, percorridos longos minutos, foi aberto pesadamente por uma empregada desconfiada se aquilo era um chamado ou palmas emocionadas para tal residência de estética duvidosa. Clamei por uma cadeira, uma mísera cadeira, e ela me olhou de um jeito engraçado de "ou é pobre muquirana ou cultiva o espírito de um" e, desprezando meus anseios aristocráticos falidos, disse que podia levar qualquer coisa que estivesse na rua que não era problema dela.

Foi a felicidade.

Mas, mas...como as coisas intensas são breves, houve o fatídico momento dos erros: não tomei-a em meus braços de imediato. Continuei andando para terminar o que me havia proposto a fazer, falar mal das coisas, e na volta, ó malditas escolhas, na volta a levaria comigo. Quando me dirigi saltitante como uma gazela no cio para buscar a cadeira, deparei-me com o meu algoz: sem metade dos dentes, a pele judiada de sol, um boné do Leonel Brizola: ele havia enfiado, todas, TODAS as cadeiras na sua carroça.

-Moço! Moço! Essa cadeira é minha moço, eu a vi primeiro, a empregada falou que eu podia levar uma, eu estou trabalhando, sabia? Trabalhando, por isso não levei na hora! É verdade, pergunta pra jagunça ali se não faz 15 minutos que passei  e pedi pra levar. OU! Estava trabalhando, você vai levar tudo mesmo, eu estou pedindo por favor, moço!

Ele me olhava achando graça, mas disse que levaria todas, porque já tinha uma mesa e a mesa precisava de seis cadeiras. Caralho! Quem precisa de seis cadeiras? Senta o mais novo no chão, come na cama, janta coxinha, moço eu queria tanto uma cadeira! E impassível balançava a cabeça em negativas de que não abriria mão da minha cadeira

-ô moça, eu preciso delas, moro com a minha mulher, minha sogra, cinco filhos, três netos, um cachorro, uma preá, o sobrinho com o melhor amigo, a prima de segundo grau com duas crianças, o ex cunhado com a mulher nova e a minha irmã solteira! Vou lixar essas cadeiras, pintar de azul, vai ficar lindo! (O olho brilhava na perspectiva de como ficaria uma cadeira clássica, senhorial, elegante pintada com suvinil, ai meu paizinho)

Aquela visão me desesperou:

- Moço, qual seu nome?
-Bahia
-Moço, ninguém se chama Bahia
-Eu me chamo
-Não, não chama, ninguém me chama de São Paulo
-Mas as pessoas me chamam de Bahia, então é Bahia
-Não vou te chamar de Bahia
-Por qual razão?
-Seu nome não é Bahia
-Não, é Ênio
-Ênio foi meu professor de química
-Da Bahia?
-Não, Ênio de São Paulo
-Ah, eu sou da Bahia, por isso me chamam de Bahia

Vamos lá, Ênio: Não vou te chamar de Bahia, pelo simples fato de seu nome ser Ênio, e te chamarei de Ênio por não ser Bahia. E apelidos são para amigos, e você, Ênio, não é meu amigo, é um estorvador, um afanador de cadeiras. Não resisti, naquele momento já estava endemoniada:

-Ênio, eu preciso dessa cadeira, sabe, preciso mesmo, estou montando um apartamento, Ênio, eu vou casar! (Nesse momento uma sensação dolorosa me subiu pelo estômago: não só não ia me mudar, como a promessa de casamento havia ficado perdida em tempos passados em um namoro que há poucos meses se desfez e a ausência incômoda ainda passeava em mim: mas fui mais forte, engoli o choro e me concentrei, pois naquele momento havia coisas mais importantes) Ênio, adoraria ter uma cadeira dessas em casa no meu novo apartamento, eu e meu marido, viu? Marido, não tô juntando não, vai ter cerimônia, eu tenho até um vestido, da Dior, você sabe o que é? Combina com a cadeira. Vou casar Ênio, ter uns dois remelentos que vão adorar uma cadeira antiga, é o que falta para a minha decoração, você sabe (ou não, acha as coisas por ai e pinta de azul), é tudo muito caro, viver tá caro, muito caro! Vai ser a única cadeira da minha casa Ênio, como eu vou ficar sem cadeira, você tem cinco! Caralho me dá uma!

Juro que naquele momento casaria com o primeiro filho da puta que passasse só pra ter a cadeira. Mas ele não se sensibilizava:

-Ênio, você mora em uma casa invadida no fim da rua? Você mora no Jd. Europa? No CENTRO EXPANDIDO? Ou, eu moro no Tucuruvi, é bem mais periférico, eu mereço a cadeira! Você tem carreta pra carregar os 43 móveis, eu vou ter que carregar embaixo do braço, sou sofrida, olha a magreza das minhas ancas nem sei como eu vou parir os dois remelentos, por favor (e apelei, me rendi) por favor, Bahia!

Foi citar o estado que lhe pariu, que finalmente fitou-me nos olhos. Varreu-me o corpo todo, deu um breve suspiro e disse:

- Ô branquela, você já me torrou o saco, porra.

Resolvi então que era bem melhor que ele. E disse que levasse a cadeira, encarinhei-me com a cena dele chegando em casa com os móveis novos, a renca alegre, todos com pincéis para transformar a mobília em algo que pudessem se apropriar. Olhei a cadeira amorosa e a figura sofrida do pobre diabo, as marcas das dores na palma das mãos, uma vida de durezas e falta de oportunidades, excluído de um sistema perverso, percorrendo as margens sociais da selva urbana...

-ÊNIO ME DÁ O CARALHO DA CADEIRA DE VOLTA!


Sacripantas, se mandou com a minha cadeira...

sexta-feira, 5 de setembro de 2014

Sob medida

Foi muito difícil não abrir seu álbum de fotos, exatamente hoje. Não sei se fui tomada por uma emoção literária que tomei emprestado, essas tão conhecidas suas, que estão sempre na intermitência de estourar quando me reconheço em alguma linha, não sei se foi o tal vídeo que assisti em uma exposição, bem megalomaníaca assim, palco de algumas lembranças que começam a se fazer distantes no banco dos instantes, o qual uma mãe fazia um apelo a memória de seu filho pai marido amigo enterrado como indigente, e se me embrulhou o estômago na perspectiva palpável do esquecimento e do derradeiro abandono de um corpo tão cheio de memórias, tão sentido e atravessado, perverso no seu próprio irreconhecimento e momentos de distância de si no desvario cotidiano. Não sei o que foi, talvez tenha sido saudade, talvez. Saudade, sei lá de que, pois em mim não se configura nenhuma imagem ou momento, mas sinto ali, na base da coluna uma continuidade que me ultrapassa a carne, como um outro corpo que pesa e se arrasta junto: vem abraçado na minha cintura com um olhar terno e cansado, sempre olhando para trás. Mas abri e vi sua foto, as muitas fotos de todos os vocês que eu já não reconheço, simplesmente me escaparam e me peguei pensando se algum dia conheci qualquer um desses que vão se apresentando, desfilando baixo a vista em sorrisos e caretas que tanto me faziam rir. Faziam? Não lembro. No transportar das bagagens deixei alguma no meio do caminho, não sei se propositadamente ou na distração: essas que sempre tomaram conta de mim. Na cabeça sua vaga imagem transitando por este corpo que tanto quis te guardar, mas que você só coube na ausência: é que ele foi feito na medida de mim.

segunda-feira, 1 de setembro de 2014

E então Deus criou o mundo

É sabido que ao longo da história da humanidade ocorreram inúmeras tentativas de transcrever ditames de um tal pai celestial que tudo vê para melhor orientar a vida de suas crias. Filhos. Enfim, como tal responsabilidade foi delegada ao ser humano que possui o dom natural de emporcalhar qualquer lugar que passe (e deixa rastros de sua ruína, e almeja transpor o tempo para que não se sinta tão insignificante perante as coisas que realmente não são perecíveis: tanto em ordem matérica quanto evolutiva), não é um grande absurdo afirmar que este serzinho bípede dotado da capacidade de produzir letras e com elas criar significados e nuances de pensamentos ad eternum em seus papéizinhos e tabuletinhas, criassem uma séria e por vezes nefasta confusão sobre quais eram esses preceitos deixados pelo Fecundador universal para que nos tornássemos plenos em nossa jornada para o fim descabido, silencioso e incerto que se mantém intermitente, perseguindo-nos junto ao calcanhar como um duplo descarnado e saudoso do contato da pele com o sol. E da pele com o asfalto. E da pele com a pele (e os arroubos de arrepio quando o vento sopra devagar na nuca, anunciando a chegada do algo tão esperado, aquela cabeça que aparece na janela e te assobia a verdade do mundo e a vista turva se faz luz como bundas de vagalumes contra a copa densa das árvores em uma noite de inverno, exibindo a claridade que não precisa tomar emprestado: tenho uma tia que sempre soube, ali na borda do prato mesmo, nunca precisou mergulhar a colher até raspar o fundo para se sentir alimentada, que estas vozes eram a própria lucidez que lhe acenava, mas suas ideias foram meticulosamente desvalidadas por um diagnóstico rabiscado no papel ou algo do tipo com o dizer: ESQUIZOFRENIA).

Muito se falou de tais escritos que foram sendo produzidos, e dos falsos e verdadeiros profetas que prostravam-se contra a fúria do mundo, clamando (blasfemando), traduzindo (inventando), dando a luz (mergulhando na ignorância) multidões de fiéis necessitados desse sopro que em teoria é mais discreto e de corpo mais sutil que um padreco glutão ou um califa assanhado. Ou um hindu levitador. Ou um rabino feito todo de cachos com seu terno de lã em pleno sol da Av. Tiradentes, transpirando seu amor ao ser Divino que provavelmente estivesse com um leque observando-o do paraíso, pois se fomos feitos a sua imagem e semelhança, deve ser então acometido por calores quando o verão saárico se apresenta no mundo. Um grande leque feito de penas do grande pavão cósmico, ser mitológico de algum grupo cultural que passou e já foi e só legou suas anotaçõezinhas desse Ente Maior que se manifestou em algum momento. O grande problema de tais devaneios ancestrais para os estudiosos é que Deus se manifestou de maneira muito distinta para cada sociedade que resolveu se encerrar em um espaço, e mesmo dentro destas sociedades as pessoas divergiram em como haviam se dado estas manifestações. Há uma história célebre passada em Mântua, de um tal Ludovico de Scárnia que atirou-se da torre maior do mosteiro acreditando que o cordeiro lhe revelava o segredo de Ícaro, quando na verdade, disse Frei Jorgues, o que queria dizer Deus era que a incapacidade de voar tornava o ser humano um ser engenhoso: e por isso eram ornitólogos e não pássaros. Frei Jorgues é uma figura que merece especial destaque no estudo da palavra divina, pois, antes de brotarem das rochas testamentos esquecidos ou preceitos ignorados dentro da religião; antes dos protestos e dos franciscanos, antes da caminhada do muçulmano peregrino ou do cair do Imperador Sol, Jorgues já se perguntava sobre a incompletude dos 59.547 textos produzidos ao longo dos anos, os quais todos afirmavam serem a verdade única do Criador. Frei Jorgues também deixou suas anotações- por muito tempo ignoradas- reflexivas sobre a divindade. Diziam:

1. Deus está em todo o lugar, e se está em todo o lugar, somos todos partículas divinas que se desprenderam desse corpo maior que, solitário no céu, desmembrou-se em inúmeros mas finitos pontos de luz para que pudesse compreender o que é aquilo chamado de experiência humana: algo que reconhece ser sua invenção, mas que ainda se mostra muito misterioso para Ele

2. Para tal entendimento, percebeu também que cada qual descobre para si verdades para voltar pra casa, havendo então de se manifestar de formas distintas e irregulares, para tornar-se compreensível a quem necessita compreendê-lo (não conseguiu prever que faz parte da experiência humana desvalidar o outro como forma de submetê-lo: foi ai que Deus conheceu a mesquinhez e a maldade)

3. A necessidade de pertencimento do homem faz com que essas vozes sutis passem desapercebidas, criando a expectativa que ensurdece de encontrar seu igual, sem lembrar que o corpo (mesmo o universal) é a priori assimétrico,então nenhuma das partes poderiam se corresponder em uma forma que não transbordasse ou faltasse milímetros: há quem creia que é nesse estado de desencaixe que mora a perfeição, pois se apropria do espaço vazio como algo natural e participante, englobando em si todas as imensidões

4. A morte destina todos para o mesmo lugar: o de morrer. E em geral o mesmo funciona para outros verbos vitais

5. Quem gosta de "cídios" é a humanidade. Vá e defenda tua crença pode ser interpretado de maneiras mais gentis ( Vide que quando Frei Jorgues escreveu estas premissas, as grandes ciências que pensariam na mensagem e no receptor estavam para ser inventadas)

6. A única forma de se encontrar


Frei Jorgues, pelo que li, não terminou de escrever suas conclusões. Parece que foi acometido por uma vontade de caminhar e não mais voltou, apenas uma vez, pelo que parece, para conversar com o defundo de Ludovico, o voador. Talvez não tenha concluído, mas pelo que tenho estudado, ninguém o fez, ou não muito bem: uma vez cheguei a pensar que estamos todos na fase rascunhal desse ser Criador que deixou o lápis na boca de um cachorro celestial que está rabiscando toda a história enquanto Ele descansa embaixo do seu manto estrelado de céu. Depois ri de tal hipótese.

terça-feira, 26 de agosto de 2014

Mal do século: verbete

Composto por uma parcela de melancolia resultante de uma super produção de bile, combinado com um frenesi por conta do aquecimento do sangue, as pessoas que padecem do estado amoroso, infelizmente, procuram a cura de tal doença em raríssimos casos, pois seus sintomas são muitas vezes diluídos ou confundidos com outros estados emocionais eufóricos que causam essa sensação de bem estar momentânea; mas qualquer pequena frustração que acomete esse ser amoroso é o suficiente para desmanchá-lo e fazê-lo criar na pele pequenas protuberâncias e cicatrizes como se feitas com material incandescente; sensação de salto agulha sambando no peito: insistente e agudo. Em alguns casos, não raros, são tomados por alucinações e enxergam o objeto de afeto em todos os espaços, insistem que o carregam dentro: como se fosse possível afirmar com tanta certeza que além de si há outro que ocupa espaço dentro do nosso corpo (enxergam-se explodindo e nos casos mais graves arrancam a própria pele dizendo que assim arrancam também o outro((alguns, mais radicais ainda, colocam-se do avesso, vomitam as entranhas, atiram pedaços de intestino e expulsam, expulsam tudo que acreditam estar contaminado e preenchido)), sem perceber que assim, na verdade, se desfazem de pedaços que lhes são pertencentes, e a mais ninguém). É um diagnóstico complicado de início mas a idiotice logo se sobressai, tornando fácil indicar aqueles que padecem de tal estado: vagam com sorrisos tontos na rua, um olhar débil e sonhador: a língua vulgar, em uma tentativa de fazer-se poesia, se desenrola em palavras complexas ditas vindas de algo divino, que nós, os simples, não podemos tomá-las em sua total compreensão, o que as torna mais silêncio que fala: o que as torna mais peso que respiração: mais grudam do que vestem: rebatem no corpo o suficiente para serem engolidas mas não digeridas dando a breve sensação de preenchimento e completude, mas que tão logo se esvazia, condensa, e faz do descomplicado a tentativa de cavar concreto com a ponta dos dedos (a carne machucada arde em um clamor febril na crença das causas impossíveis: mais um dos estágios das alucinações: no campo das impossibilidades, quanto maior o erro, mais palpável ao ser amoroso lhe parece) Há quem diga que nunca se cura, o estado amoroso, mas há relatos de que a cura está no próprio amor, que no fim das contas, tem  seu fim em si, apenas. Estudos datados do século XIII, feitos nas abadias longínquas de Octusburry, diziam que banhos gelados com ervas rasteiras ou uma boa dose de vinho ajudavam a acalmar os ânimos dos frades tentados pelo amor, este causado por alguma campesina dos seios em riste embaixo do trapo de algodão. Iam narrando sensações que dançavam pelo corpo, e de como se elevavam suas partes quase como mágica, fazendo-os chorar por todos os orifícios. Os sintomas são os mesmos há pelo menos 1200 anos, mostrando que, ao longo dos séculos, não progredimos muito com a doença que assola mais da metade da população mundial. Não se sabe ao certo quando começou a disseminar-se, mas há registros mais antigos que o próprio homem de sua presença nos seres mais pequeninos, suspirando trevosos, amedrontados com o agridoce que a doença deixa, abandona na boca.


Nota: Foram encontrados há alguns anos documentos provindos da região de Mouriscânea, rebatendo a crença do amor como doença: do pouco que se conseguiu traduzir de tal idioma barbaresco, entendeu-se que acreditavam que o ser que se mostrava incapaz de contaminar-se com o tal, é que padecia de um estado doentio, blasfemo, vil, cretino, ludibrioso, infeliz, enfezado, requenguela, mentecapto, vesgo, infame, fétido, viscoso, descortês, ignorante e bobo.

quinta-feira, 14 de agosto de 2014

Até tentei escapar

E ai se me apresenta a frase que não é homem e sim o mundo o anormal, mas sempre me perguntei quais são os preceitos da normalidade que a tornam tão palpável quanto se fala dela: é vaidoso dizer-se dono da consciência em sua totalidade, em sua plenitude, sabendo dos arroubos de espontaneidade animalescos que nos tomam de surpresa em um comportamento um tanto debilóide: tanto dentro de uma tristeza quanto de uma alegria desmedida escancarando a boca cheia de dentes, fazendo-se avesso, secretando por aí as coisas que se diziam vergonha: deixa um rastro gosmento na calçada que brilha em dia de sol enquanto sente o corpo pulular alegrinho, o pé empurrando o chão em uma tentativa de vôo, mesmo reconhecendo o peso: mesmo ciente da queda. Ora, e de que importa esborrachar-se feito um purê desengonçado neste plano horizontal que se diz feito para caminhar por cima, quem liga, quando à contravenção, o corpo é tomado por um ânimo ( e aqui evoco toda a ancestralidade etimológica da palavra ânimo, porque só assim ela se fará compreensível no tipo de ânimo que falo, sabe? o ÂNIMO, aquela coisa do caralho que te toma e UAH, te faz soltar um brado vivaz e ridículo feito pirata em cima de uma canoa para enfrentar a tal da tempestade feita uma nuvem só) uma vontade cômica de esparramar-se cortando as linhas fronteiriças com uma tesourinha: recorta a boca o crânio a coluna vertebral e o períneo esparramando o amor, a vontade e o monte de bosta presa ( sempre me perguntei como as coisas sublimes sobrevivem no corpo nadando no meio de tanta porcaria) pelo chão, sabe? o chão do mundo, a calçada infinita que em algum momento da vida desemboca em alguma avenida 9 de julho espalhada por aí, em alamedas de natureza artificial com árvores feiosas de luzes de natal. A coisa é, tem diferença a minha anormalidade com a do mundo, se o construo e secreto nele todo o meu serzinho, esse euzinho umbigado que caminha arrastando-se, sonhando agarrado a postes, lambendo o corrimão das pontes para acessar as mil línguas que se debruçaram contra o parapeito em devaneios de vidamorte enquanto se levantavam os prédios? A loucura do mundo é só uma faceta minha e vide o verso.

sexta-feira, 8 de agosto de 2014

útero

E este útero me atrai a nunca sair, circundado por flores em suas paredes sanguíneas, pequenos botões sempre no aguardo, na promessa de um desabrochar tardio: não gostaria de sair sem ver o rompante das flores, ainda mais sabendo que lá fora é inverno e as roseiras são escassas: tentam suaves romper o muro de concreto que se constrói na esperança de recriar essa casa há muito abandonada: não se pode ouvir tão de perto o palpitar de um orgão bombeando vida para todos os lados (seu ritmo me nina enquanto nado tranquila na fronteira protetora: mas o que? rompeu: projeto-me para baixo com a velocidade de um tiro).

: a partir deste momento, tudo caminha para sempre em uma eterna separação.

quarta-feira, 6 de agosto de 2014

Babélico

Há um tempo me assombra a ideia de que talvez fale certo idioma Babélico disfarçado por um véu dionisíaco que esconde o tédio que se escapa tanto de mim que falo, quanto daquele que no esforço de ouvir, perde-se nos rompantes de sons incompreensíveis e significados dúbios de uma língua já velha, exausta de movimentar-se na boca seca de mel: salga o paladar de comida fria enquanto observa mil bocas mastigarem na sua frente com a estranheza de quem observa de perto um inseto deglutindo o alimento: porque não se proíbe que se coma diante o outro? A mesma boca vil que blasfema mantém o ser melancólico vívido esturricando-lhe o sistema digestivo de mil nutrientes que não contemplam a ausência de coisas mais vitais, mas há quem diga que amor não suporta um estômago vazio. A boca: mastiga, movimenta a comida de um lado para o outro, restos de alimento escapando em uma fala incongruente, enche a boca de gás: a mesma que irrompe a boca alheia com a língua: que molha a buceta no quarto escuro, sorrateira mergulhando mais e mais no corpo entrevado, a língua doce de secreções lambendo o resto do corpo, escreve com a saliva palavras incompreensíveis nas minhas costas Benedictus ore in my ass, não rasgue o véu há muito tão bem colocado: é derme: suas mãos escalpelam e me fazem nua em carne-viva: exposta, vulgar, o sangue-suor escorregando pela testa pescoço, pingando no lençol branco: corpo alimento.

segunda-feira, 14 de julho de 2014

(Amar)go

- Fodeu.

E tinha certeza que havia algo errado. Puxou da memória as possibilidades para tal coisa terrível que tinha certeza que iria comê-la aos pouquinhos até virar um nadinha intragável, até desmanchar como um balão furado, como um mamão na fruteira que ninguém come pois há frutas bem melhores que mamão. Era ela naquele fatídico momento do mundo, dando-se conta que estava condenada a padecer de uma doença tão incômoda e tão devastadora e tão amoral que iria obrigá-la a retirar-se da vista dos outros e isolar-se como uma ermitã nas pseudo-montanhas de sua cidade com uma arvorezinha ou outra que tomba na estrada em épocas de chuva muito forte e impede o acesso. Ela deveria ter impedido o acesso desde o começo, de um, de todos, pois agora via-se ali, invadida, contaminada e tão perversamente retirada e arrancada de si (pois agora era a casa de um vírus-bactéria-ferida ou algo parecido que só iria se multiplicar e desalojá-la do que agora considera templo ((pois antes odiava, desprezava e chorava copiosamente pela má-sorte de ser como era)) ou o único que lhe pertence), que quis encarecida e devotamente acabar com todo o dramalhão logo. A casa viria abaixo por vontade própria; não ficaria à espera de um bichinho desgracento, de uma dorzinha ardida que resolvesse trabalhar e mordiscar célula por célula, tulmorizar pedaço por pedaço, deixando no caixão um cadáver feioso e desumano de cor arroxeada. Era essa a memória que tinha dos que padeciam de tal doença ou coisa parecida: em geral, cadáveres não são lá muito bonitos, não importa, na verdade, pois já estaria morta, mas aturar os comentários de como foi e como estava, ai, isso não. Mas como, como isso tinha acontecido? Pensou em um e outro que trombou por ali, no amorzinho, no quase, quanta gente passou, e foi deixando um pouquinho, cada um deixando um pouquinho, queria devolver urgentemente estes pouquinhos, uma malinha para cada um que passou " Toma, leva, é seu, não meu, seu, SEU, responde a outra pessoa esse pronome, leva", mas como separar? E tem coisa que já era tão dela: o jeitão de falar, o jeitão de andar, o jeitão de vestir. E tinha certeza que alguém havia esquecido um pedaço do corpo nessa de esquecer as coisas, deixou lá, escuro, na origem de tudo, cravado em um músculo pulsante, para que engravidasse da morte. Tinha certeza, apesar de não lembrar. Tinha certeza, apesar de não trocar, tinha certeza, apesar de odiar toques. Tinha certeza. Estava tão contaminada, tão dolorida, era uma dor tão real, tão certeira, que só podia ser a morte anunciada: estava contaminada de vida pelo outro: a tão bem-vinda a sondava e destruía: uma vida com contagem: deseterna e fadada aos devires. Sabia disso quando acordou. Pensou nos seres queridos, nos não tão queridos, nos que ainda seriam queridos,nas explicações e nos avisos: as desculpas por se deixar invadir. No espelho já se via vulto: a imagem descarnada de quem já está de partida. Meteu-se nas vielas, pois, antes de retirar-se assim, meio à francesa das coisas, tinha que ter certeza:

- Muito bem, já lhe chamam pro resultado.

O braço todo picado, ela e mais 3 caras, a salinha de espera tocando algo que chamava lounge, foi o que um deles disse. Que porra de música chama lounge, isso não se faz com quem espera algo tão sério, música lounge e balinha de gengibre, queria chupar o pote inteiro de balas, queria chorar e já pensava em como ia distribuir seu tão pouco até anunciarem seu nome. Sentiu um breve espasmo e morreu. O que se moveu dali em diante foi qualquer coisa que receberia a notícia: ela quis ser mais esperta e morreu antes.

-Muito bem, tudo certo, saúde impecável: nada foi detectado no seu sangue. Nem no seu estômago, nem no seu rim, nem no coração, nem no seu intestino, nem no seu pulmão e joelho, nem na sua coluna, nem no pâncreas, muitos menos no fígado. A narina direita é um pouco maior que a esquerda, mas isso é normal, sua mordida é cruzada, mas você sobreviverá, a tinta do seu cabelo é tóxica, mas ai é só raspar, sua pisada é torta e precisa de um pouco de sol. A cabeça só, que demonstrou algum tipo de atividade anormal
- É um tipo de idiotice, sempre me acontece.
-Ah é!

Antes de pisar para fora daquele lugar infernal, deu uma bela olhada na rua e se sentiu deprimidamente tão parecida. O amontoado todo da cidade lhe causou a breve recordação de quando era apenas um terreno baldio: bem antes da pretensão de construir algo e de ser atravessada, invadida: contaminada. E como não?
Colocou o primeiro pé na calçada tendo que lidar com a constatação e a certeza triplamente mais terrível que era a de estar completamente, transbordantemente, irritantemente e (amar)gamente viva.


sexta-feira, 4 de julho de 2014

Tem dor que dói
tem dor que arde
tem dor que se estabelece
e tem as que passam rápido
que não são a maioria.
Tem dor chorada
Tem dor engasgada
e tem dor que é só dor
silenciosa, lá em algum canto
espreitando ansiosa
na margem do muro
a hora de aparecer, sempre atrasada
diluída no riso
um pouco frágil
tentando ser
em espaços que não lhe cabem.

segunda-feira, 16 de junho de 2014

A senhora do estacionamento

E tinha aquela senhora que a minha mãe sempre encontrava na rua, a roupa era maltrapilha mas a unha estava sempre bem pintada de um escarlate cintilante na mão preta. Até então não havia visto muitos negros na vida (era pequena, e havia ficado anos fora do país), então sempre ficava curiosa com as mãos com a palma branca, e a dela era cheia de anéis de prata carcumida. Ela era uma mulher esquisita, eu sempre me escondia atrás da minha mãe quando ela aparecia, e ela sempre aparecia. Estávamos na rua, eu tranquila no meu sorvete, eu tranquila no meu pãozinho, eu tranquila no meu chocolate e ela aparecia: Ô dona Rose! E era o fim, pois minha mãe sempre me fazia dar o que eu estivesse comendo para ela, para que ela levasse para o filho. E eu, como sempre fui um estômago cheio de fome me ressentia até os ossos de ver minha bisnaguinha indo embora. E lá ia ela toda feliz. Ela tinha um marido que era o seu Bastião, minha mãe sempre o chamava para fazer algum serviço em casa, fazia de tudo o homem: arrumava piso, pia, teto, mulher mal amada. Uma vez a senhora esquisita veio bater na porta de casa falando que ia matar o Bastião que havia embuchado uma menina. Pensei que era bem feito pra quem levava embora todas as bisnaguinhas. Anos depois, andando pela rua me veio o entendimento que esse embuchar tinha natureza diferente.  Aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaahhh eu vou matar o Bastião! E arrumava as tetas no sutiã. Aaaaaaaaaaaaaaaaaaai Dona Rose eu vou matar o Bastião! Matar o Bastião e roubar essa menina linda pra mim. Deus que me livre, pai nosso ave-maria ir embora com aquela mulher, ô cisma que tinha comigo. Eles moravam no estacionamento, quem mora no estacionamento? Eu, se ela me roubasse. E rezava ajoelhada "paizinho do céu não deixa ela me levar pro estacionamento, paizinho do céu que eu consiga comer meu lanche sozinha, paizinho do céu que ela não mate o seu Bastião, porque minha mãe grita quando a pia dá problema". Nunca soube o nome da Dona, mas todo mundo na rua a conhecia. Saía lá dos fundos do estacionamento com a mão na cintura, um lenço na cabeça e um largo sorriso com um dente faltando na parte de baixo. De vez em quando fumava, de vez em quando bebia pinga lá na padaria, de vez em quando sambava quando via a acadêmicos ensaiar na rua. Mas toda a reza feita deu certo, porque no fim das contas, ela nunca me roubou. Só me assistia passar com a minha mãe com um olhar afetuoso o qual nunca consegui entender se era realmente para mim, ou para a promessa de comida que eu significava. Ela falava dos filhos, mas nunca vi nenhum, minha mãe dizia para eu não perguntar, eu sempre fiz muitas perguntas: uma vez, na ânsia de ser roubada, pedi enfim para ver a tal da casa que eu ocuparia e minha mãe virou-me um tapa na bunda por ser curiosa. Quando perguntei do filho, foi na boca. Ainda bem que com o tempo ela parou de me bater, porque nunca deixei de fazer perguntas. O caso é que quando o estacionamento ficou maior, e sendo ocupado por mais gente, a tal da Dona sumiu e as pessoas da rua acharam de bem, já que a quase casa dela emporcalhava a vista da nobre rua do Tucuruvi. O Bastião, pelo que se soube morreu, e a senhora, algumas vezes tive a impressão de vê-la nos ensaios da escola de samba rodando na ala das baianas feliz da vida com a unha sempre escarlate. Mas sempre foi uma impressão, pois parecia que ninguém mais a via, ou só não ligavam mesmo.

O tal do filho, depois de muitos anos, apareceu na porta de casa: Ô dona Rose, que satisfação! Vim agradecer a senhora. E entregou um bolo dentro de uma assadeira amassada. Bolo de laranja, sem calda. Meu coração bateu dentro do peito atônito: Pessoas como Arquimedes entenderiam essa sensação, de ver uma pergunta de anos esclarecida em um segundo ínfimo, em uma batida de porta: ali estava a resposta de minha curiosidade infantil.

-E aquele pedaço de bolo devolveu todos os doces usurpados: estava bem bom.

sexta-feira, 6 de junho de 2014

Passagem

Olha: mais um.

era um travesseiro
cheio de cabelos
dela.
E mais outros pedaços
outras partes de corpo
espalhados pela cama.
Eram braços e pernas
emboladas
eram pele suada
um encontro de pelos
e a resistência inútil
dos cabelos que lhe escapavam
e povoavam o lençol
tingindo tudo de vermelho.

E olha que estavam assim meio down
em todos os idiomas
(a tristeza sempre latente
na ponta da língua)
e olha que eram assim
bem diferentes
(e tão iguais nas discordâncias)
e olha só: outro fio de cabelo,
escorrendo lânguido
pelo travesseiro.

É de pensar: ela dizia
é de puxar: ele dizia
é o atrito do encontro.
Viraram de lado
assim como fazem os românticos
e se fizeram companhia
em suas solidões.

quarta-feira, 4 de junho de 2014

Dora banguela

Ah que saudades da minha Dora. Adorada Dora, que saudades da minha Dora. Era o mantra matutino daquele senhor que passara pela vida dando Adeus aos seres amados. O golpe fatal foi a ida da Dorinha. Nunca a tinha chamado de Dorinha, nem gostava tanto dela assim quando estava viva: a Dora tinha uma irritante mania de se coçar o tempo inteiro e jogava a culpa na circulação ruim; a Dora lavava roupa e louça com o mesmo sabão, a Dora era meio porca, tanto que perdeu os dentes cedo por falta de escovar: a porca dizia que isso era coisa de propaganda americana e que nunca se escovou os dentes como no século XX. A coitada da Dora nunca estudou, era burra, mas aquela boca desdentada e fedida fazia milagres embaixo do lençol: nada como uma boa boca sem dentes para fazer qualquer homem virar os olhinhos. Ah que saudades da Dora, era uma menina quando a conheci e metia-lhe a mão por baixo da saia para vê-la ronronar que nem um bicho: a Dora nunca foi muito gente. Morreu um pouco quando foi tirada do mato, ficava olhando a janela feito ave empoleirada por horas e horas, nunca dava para saber o que pensava porque Dora não gostava muito de pensar. Sempre fazia perguntas descabidas como qual o sentido de viver da forma que se vive e como não se angustiar diante de tanto mundo. Que tanto mundo, Dora? Você é burra? E ele vinha e lhe mostrava o mapa: Não é tanto assim - e com o dedo traçava rotas em cima do mapa - Viu? menor que aquela manga em cima da mesa. Come manga Dora, que fiapo nenhum fica preso na sua boca banguela. E lá ia Dora feliz com a sua sorte descascar a manga. Como ficar na casa depois que Dora se foi? Dora era especial com seu vestidinho pobre de algodão, sua pele encardida, seus pés dançarinos pisando no quadradinho de grama no quintal. Antes de morrer pediu pra ver terra, e o velho levou um vaso. Dora se debulhou a chorar, queria terra. Ô mulher burra da boca de ouro. Ah Dora, se eu tivesse lavado seus cabelos, ah Dora se eu tivesse quebrado o concreto do pátio do quintal e tivesse plantado um pé de alecrim, ah Dora, como ficar nesta casa com tantos retratos e as manchas de sujeira que você nunca conseguiu, na verdade, nunca quis limpar? Dora dizia: É o tempo tomando espaço no móvel escuro; é o desgaste se fazendo presente na parede: a morte espiando, benzinho. Devia ter feito algo com a cabeça maluca da Dora, falava cada coisa aquela mulher! E ele amou cada dente que caiu, em segredo guardou todos e agora os carregava no pescoço em um colar. Um vizinho disse para ele: Reforma a casa! Pinta as paredes, troca as fotografias, arranja uma moça. Como explicar que moças possuem dentes? Enterrou o último de seus amores no cemitério central num caixão barato de madeira clara e detalhes de plástico prata. Dora nunca ligou pras riquezas, então não ia ser agora que ia gastar dinheiro com caixão. Tchau Dora, minha bem amada, o travesseiro ainda exala o cheio azedo da sua pele suada de pesadelos. Enterrou-a com todos os santinhos: a Dora adorava aqueles santos, mas não sabia rezar direito. 

Decidiu então reformar a casa, e como era muito esperto aquele velho, fez na casa o que fazemos com as grandes dores: sobrepôs cada azulejo com outro de gosto duvidoso, colocou papel de parede em cima de outro velho papel, pintou as cerâmicas do banheiro com rolo de tinta, quebrou o concreto do pátio até achar terra. E assim viveu, alguns poucos anos mais, sobrepondo pisos, paredes e cavando buracos no chão até perceber que a casa havia se achatado: assombrado concluiu que não haveria espaço para outra pessoa ali dentro e finalmente ficou em paz. Ah dorinha, todos esses anos, e agora entendo quando você dizia que azulejo era frio. Morreu em meio esse arroubo de lucidez no piso que era quase teto. A casa ficou muito tempo ali como um monumento a saudade que aos poucos não se soube de quem. Os vizinhos falavam de um velho excêntrico que um dia se pôs a colar azulejo para preencher espaço, mas era uma história desinteressante: inclusive, diziam, o piso original era mais bonito.

segunda-feira, 26 de maio de 2014

Das coisas que não se apagam

No fundo da tela a tal da mensagem:
minúscula em um celular
falava de um tal de amor imenso
nem pra ser em papel de carta
pra deixar amarelar

a mensagem piscava
na luz infernal
rolando debaixo do meu dedo
essa tal de tela touch:
um toque e tudo se desmancha

E não haverá durex para remendos
nem papel picado no lixo
é só um botão, e não haverá rastros
a tecnologia conseguiu inventar o tal do amor etéreo:
a virtualidade deixou as palavras desnudas de corpos.

Posso deixar então, por ora
o amor amado
suspenso na memória do aparelho
há coisas por dentro de mim
que precisam ser arquivadas

Ah benzinho, de todas as falas poupadas
de todos os berros contidos
de todo o silêncio trocado
essa mensagenzinha nanica
era a minha favorita.

sexta-feira, 23 de maio de 2014

O ser apaixonado

E então ela quis urgentemente, ardentemente esquecer. Rogou em claro e bom som, para si e para o mundo, que queria que seus neurônios oxidassem e que, pouco a pouco, seus grandes monumentos perdidos no labirinto da memória fossem sucumbindo finalmente depois de tamanhas intempéries, as quais até então resistiam frágeis e desfigurados da acidez bruta dos desencontros da vida. Erigidos como marcos de velhas conquistas de velhas guerras travadas, viu a desilusão corroer-lhe o cérebro o peito e o estômago. Era um corpo só de história, mas um corpo sem futuro. Que derrubem, pedaço por pedaço e que a relva se apodere, mostrando que, simplesmente não importa: traz à tona o perecível, da carne, da ideia, da memória. O que se ergue e mantém-se de pé não nos cabe construir. Essas coisas, que vão além de nossas mãos, além de nossa vontade e escolha, nos observam silenciosas, passar, simplesmente passar. E que importa, esse coração tão manso? Já não cabe mais em si e já não bombeia os disparos frenéticos ao vislumbrar o tal do ser amado, este que, no final das contas não existe. Amou o amor, simplesmente e puramente, amava o fato de amar e não deixou que ninguém usurpasse este lugar para que fosse ocupado por um ente real, e passageiro.

-Mal dos românticos

Entregou-se então na tentativa de esquecer, largou-se de si, do cuidado com o corpo, da consciência, do apego e mergulhou fundo na tenra melancolia de não mais querer ser, uma tentativa de existência ínfima e vulgarmente despretensiosa, muda e surda dos movimentos internos, livre de reflexão, significação ou qualquer tentativa de entendimento que não fosse essa: a de ser passagem, breve, desoladamente, desesperadoramente breve. Não havia muito jeito: como dissuadir um ser romântico de seu propósito? Como descontaminar o que parece candidamente limpo? Não há volta, nem dor, nem reparos: não há mais nada. Nada que não possa ser derrubado, desfeito, desajustado. Fenece, principalmente os de coração manso atormentados pela febre de um estado de espírito doentio: o amoroso. O amor exige certo estado psicótico, certa cisão, esse desmanche do corpo, se diluí desfronteiriço esparramado no limite do amargo.
Amargor - na ponta da língua, na boca do estômago, no olho do cú: não poupa nenhum pedaço. Caminhamos perturbados largando falsos segredos em velhas gavetas: elas resistirão, com milhões de confissões ardorosas, papéis de cartas manchados e encardidos: ilegíveis com merda de algum inseto insensível. Cartas de amor são comida de traça. enchem o estômago de invariáveis angústias, defecam felizes as mazelas das gentes. Já ela na sua tentativa de esquecimento enche a boca de terra no desespero de estourar em flor, mas cá entre nós, sabemos que disso só vai nascer matinho: até a flor irrompe sozinha, independente e cheia de si. Ela não, a boca alargada como um vaso.

- O que aconteceu com aquela moça?
- Deve ser maluca, e só.

Até quis responder que aquele estado provinha de um...havia esquecido o quê.

sexta-feira, 4 de abril de 2014

Je t´aime Mon amour

Eu costumava gostar mais do Romeu aos 9, mas é um fato que filmes de romance ainda me fazem chorar e acreditar em uma série de situações descabidas. Adoro um drama. Adoro desencontros escabrosos regados a um sofrimento intenso, gestos trágicos, frases impactantes e jogadas de cabelo colossais enquanto o outro lhe observa ir andando. Acho um charme, mas é muito difícil ser charmosa em São Paulo. Outro dia desci de um carro no meu melhor estilo "Não baby, nós nunca tivemos Paris, nem Texas, nem Viena nem nada", joguei meu chale para trás mas tropecei na guia, bati a canela no poste e ganhei um puta roxo. Sem contar as risadas diante dessa construção de cena patética. Não me sobrou nada além de juntar meu resto de dignidade, dar um sorrisinho de "não me importo" e ir embora.  Deveriam existir cortes nesses momentos, mas é isso, cenas funcionam em filmes. O Humphrey Bogart era menor que a Ingrid Bergman, e na icônica cena de despedida dos dois ele estava em cima de um banquinho, mas isso não mostram. Assim como não mostram nenhuma atriz pornô se engasgando enquanto...trabalham. Enfim, é o tipo de coisa que deviam nos alertar, sabe, para não gerar expectativas e para que não nos tornemos megalomaníacos com situações simples. Pois, sem os cortes, a direção, a maquiagem e as roupas muito legais, nos tornamos apenas uma cópia de carbono manchado de algo que é, na sua essência, ficcional. Minto, não sei se ficcional, mas um ponto de vista um tantinho descolado: uma ideia, recorte, representação, sei lá como chamar. Lembro de quando li Sonhos de uma noite de verão, e que, dentro da história, tinha um grupo de teatro que queria fazer uma peça, e enquanto apresentavam ficavam avisando o público que aquilo era só representação, que eles não eram quem diziam ser, eram apenas personagens, então, para que não confundissem. Li esse livro com 11 anos e lembro de achar muita graça para a advertência dos atores, pois me parecia óbvio. Hoje tenho exatamente o dobro da idade e, ironicamente, constato que era uma advertência realmente plausível. Sábio Shakespeare: inventou toda aquela baboseira romântica, mas lembrou de alertar que era...invenção.

terça-feira, 1 de abril de 2014

Criança brincando no jardim

Criança. Era uma criança brincando no jardim.
Uma criança brincando no jardim protegida
protegida por uma máscara
ou algo do tipo
qualquer coisa do tipo
uma máscara azul na cabeça careca
e branca
máscara focinheira
máscara hospitalar
máscara para sanarsalvarlivrar o pulmão
de ar tóxico.
Protegia sim, seu pulmão frágil
os brônquios alvéolos e capilares
talvez doentes
talvez ocos
talvez repletos
de ar do mundo, a parte quase limpa.
Brincava distraído sobre a grama
protegido
mas não podia cheirar flor.

sexta-feira, 21 de março de 2014

ás vezes me esqueço como se escreve

Eu ensaiei, pelo menos, 3 textos que não consigo acabar. Não que eu ache que todo texto deva ter fim ou algo do tipo. Na verdade, sou simpática a textos que não terminam, ou pessoas que acrescentam nas entre-linhas partes que pudessem estar faltando, dão continuidade, misturam com outros, afinal, o texto não está para outra coisa além de trazer à tona o que em geral já sabemos. Textos, em geral, não trazem muita coisa nova, tirando, claro, os textos científicos cheios de tese e nhenhé, mas estes me dão a sensação de repetição algumas vezes. Falamos das coisas acreditando estar dando a luz a algo inédito, marretando a cabeça das pessoas com o novo, ou compartilhando a nossa percepção de mundo com alguém que não a tenha. Tudo baboseira. Escrever é um ato prepotente, principalmente quando cremos que o que escrevemos é exclusivo e único. Há algo de mágico em escrever, é verdade, mas nada do que é escrito é nosso, entende? Eu assino, ás vezes, assino mesmo e fico toda orgulhosa, e ai as pessoas dão uma lida, gostam, não gostam, mas enfim, leram, e isso dá um certo orgulho, mas é um orgulho babaca. Agradeçam ao mundo, da próxima vez, pois se quem escreve o faz, é por conta do mundo, e das pessoas e das coisas que estão nele, escrever é quase como tomar emprestado. A coisa, é que escrever é o espaço da descompostura. Só isso. Se eu fosse menos fechada, talvez escrevesse menos. Mas como não me descomposturo no cotidiano, rasgo toda a cautela quando escrevo. Mas agora, ando sem ter o que escrever. E não é por falta de olhar o mundo: Há pouco descobri que existem outros ângulos de observação, diferentes do que estava acostumada, e nossa, o mundo é grande mesmo, estou apavorada, ai paizinho. Ai resolvi ler esse monte de coisa que fico escrevendo e achei engraçado que, desde quando comecei a escrever, praticamente escrevo sobre as mesmas coisas. Mesmas. Porra, as mesmas coisas há quanto tempo? Ás vezes mais melosa, ás vezes mais ácida, ás vezes mais pretensiosa e todo aquele nhenhé e firula para fingir que eu manjo de algo do que eu estou falando, mas sempre a mesma merda. E ai não tive muita vontade de terminar os outros que eu comecei, até tinha um engraçadinho, de uma mocinha que gostava de desvirginar meninos. Sei lá porque estava escrevendo aquilo, entende? Essa baboseira de quando a gente descobre que faz alguma coisa, e se sente na obrigação, a partir daquele momento, de fazer. As coisas são mais naturais, alô, mundo! NATURAIS. Até queria terminar aquilo que comecei, foi assim que eu aprendi "termine o que você começa", mas nunca terminei nada, quase nada. Tenho certo gosto mesmo, de deixar incompleto, deixar uma lacuna lá, no infinito, brilhando, para que em uma outra dimensão aquilo possa ser preenchido de outra maneira. Isso de definitivo nunca me cativou, apesar de ter descoberto que demoro para sair do lugar, tipo caramujo quando despenca da parede, só nessas situações. Caramujos são meio burros, coitados, sempre achei, bicho burro, não dá muita dó de matar não, mas entendo que deve ser difícil tentar subir uma encosta na condição dele. O fato é: não sei muito mais o que escrever. Talvez se eu estivesse deprimida, ou querendo morrer, mas meu cérebro anda silencioso. Deu um pane no dia que eu acordei feliz de novo. Ai que merda, não sei ser feliz não, me torra um pouco saco, sempre achei um estado um pouco irritante, o mundo é cão, não é para ser agradável. E não o acho agradável, ainda, mas tem esse silêncio apaziguador que não me deixa muito escrever, não tenho tido tempo para observar, pois tenho estado nas coisas que observo geralmente, troquei um pouquinho de lugar, e agora penso se alguém me observa escrevendo de mim “olha a trouxa indo lá”. Deve ter, mas não me importo muito. Existe uma surda indiferença com algumas coisas neste exato momento, que não me deixa escrever, estou quase paralisada. Outro dia descobri que vou morrer, e que isso é um fato MESMO. Morrer nunca me foi tão palpável, que se eu decidir me jogar da janela do lugar em que estou agora, agorinha, eu vou me espatifar e explodir, e alguém vai ter que juntar o que esparramou, chamar equipe de limpeza, essas coisas. Que servicinho, hein, desgrudar gente morta das coisas. Deve ficar engraçado depois de um tempo, esse desmanche, esse caos todo. Mas ter esse poder, de que a decisão é minha, nossa, que poder. Só não é melhor que a sensação de não decidir. Essa não-escolha é a melhor escolha, na maior parte dos casos, eu acho. Eu costumava ter uma vista da janela do meu quarto, que não tenho mais porque tem um prédio na frente, e nesse prédio tem pessoas, e elas viraram minha vista, e eu provavelmente a delas, a gente já deve ter se visto pelado até e todas essas indiscrições que janelas causam que não só crimes, mas a coisa é que alguém deveria mudar o significado da palavra horizonte, só para acompanhar essas mudanças de vistas as quais estamos sujeitos o tempo inteiro. O prédio vai cair qualquer dia desses, ou sendo menos dramática, vamos nos mudar, para lugares mais altos, para casas muradas, para pessoas mais peladas. Tanto faz. Tanto faz: o que foi escrito, o que foi sentido, o que foi visto, o que só foi. Ás vezes a gente vira relíquia de nós mesmos, e teimamos em conservar peças que não possuem tanta importância (eu trabalho em museu). Se eu pudesse, botaria fogo nos museus, e na história. Menos na literatura, ela me salva. É uma tábua de madeira no meio do oceano. Mas só porque eu me esparramo no texto, e me acho no meio das linhas e finjo que são minhas. Senão botava fogo também. Não sei muito o que escrever. E não me reconheço muito no que já escrevi mais. Eu comecei três textos que não consigo acabar. Eu acho que foram desvarios de alguém que achou que sabia escrever por um ínfimo segundo. Naniquinho mesmo. Perceber-me de fato no mundo me deixou meio burra, naquele estado de descoberta de novo. Eu sou um ser no mundo. Sei lá o que isso significa, mas estamos ai, mudando de verbo, um que não se refere apenas ao globo ocular, a uma antropologia antiquada e estrangeira. Mas, não tenho muito o que escrever neste momento, não tenho nadinha para escrever, acho que nunca tive, de fato. Fazer xixi, agora, me parece mais importante que me estender na minha falta de assunto. O corpo acordado, olha só, ás vezes me esqueço dele, coitado. Não gosto muito dele não, mas sem ele, bom não tem muito o que se possa fazer. Nem xixi.

- É necessário ser absolutamente moderno

Caso contrário fica muito difícil entender as ondas de mudança dessa...dinâmica contemporânea: efêmero, ressignificação, sujeito, virtualidade, simulacro, idealizações: palavras tão recorrentes no meu vocabulário, mas com conceitos tão mal construídos: pouco entendo a maior parte das coisas que digo, repito por nelas crer, mas a vista é turva para enxergá-las perto de mim, ou longe, ou em qualquer lugar. Estou sempre deitada na barriga do mundo, observando as tangentes se afastarem, ás vezes acho que o que sei é eco. Me fecho entre quatro paredes crendo que esta é a edificação segura para se estar, mas a dúvida sempre me encontra: observo surgir as marcas de infiltração no teto: ele vai cair em cima de mim, a qualquer momento. É o questionamento. Não cai sempre, mas ficam de aviso, derrubando a água suja em cima da minha blusa branca: por vezes me perguntam por onde andei, e penso que sempre estive no mesmo lugar, mas a blusa parece sempre pior, é a goteira, entende? A dúvida que paira acima de mim, se tivesse uma escada tudo seria diferente, mas tenho pernas e um joelho ruim. Danço sozinha embaixo da goteira, e assim a ignoro, rodopio-rodopio-pirueta e termino tirando uma pequena valsinha, fico assim em transe vendo o quarto inundar das rachaduras, é que aqui não tenho medo das gentes e não preciso explicar estes termos do mundo novo: parece que antes de ser eu sou um objeto social: os livros dizem que esse esvaziamento faz parte da minha geração: o hedonismo barato faz parte da minha geração: as multifacetas fazem parte da minha geração: mas só porque nasci nesta geração não quer dizer que faça parte dela, faz sentido? Só sinto as mesmas coisas, as mesmas pressões e as mesmas demandas: existencialistinha fajuta, um pouquinho, termos filosóficos me complicam, apesar de existir estar além de qualquer tentativa racional de explicar. Se gostasse de Alberto Caieiro talvez acreditasse que a metafísica das coisas está nas próprias coisas, Alberto eu te amaria com todo o meu amor não-racionalizado e datado históricamente, mas entendo pouco da complexa questão da simplicade das coisas, quase vulgar. Sou complicadamente comum, errôneamente comum, singularmente comum, tentando entender coisas simples por meio de pretensiosos discursos das gentes que pouco saíram do quarto: rodopiam, todas elas junto comigo.
O artifício da escrita disso tudo não é real: o que me faz escrever é o que chega mais perto do que em mim é verdade, é a minha metafísica, a pouca simplicidade: meu óculos de mundo {[não sei de qual, se interno ou externo, isso é, se existe algum que vai além de mim (já vejo surgir, fina como um fio de cabelo, outra rachadura) a matemática só me ensinou como utilizar sinais de equação para fingir de sei dar ordem às partes]}.

A frase do título é do Rimbaud, e o caso é que nunca li Rimbaud direito, nem sei o que ele quis dizer com a frase mas a achei importante. Gosto do Rimbaud porque ele parou de escrever e foi para a África, ele, sei lá, um belo dia saiu do quarto.

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

A vida continua, até breve.

Como a minha avó já era velha quando eu nasci, aconteceu de eu ficar esperando o dia em que abriria a porta do quarto dela, tentaria acordá-la e a encontraria morta. Não que isso seja uma vontade, claro, mas é que depois de ver tantas vezes a cabeça dela despencando de sono nos momentos mais repentinos, fica um tanto difícil não pensar nisso. Certa vez ela dormiu no genuflexório que tinha no quarto onde rezava para o Santo Expedito, São Bento, Santo Antônio, Santa Rita, Santa Barbára, Nhá Xica de Baependi, Jesus menino, Jesus Adulto, Sant´Anna e Zé Pilintra. Na verdade, não a culpo: duvido que haja alguém que não durmiria se tivesse que rezar para tanta gente. A única coisa é que tombaria para o lado, não para frente como ela, os pézinhos para o alto com as meias auxiliares de varizes toda frouxa na canela. Nunca perguntei se a meia, no estado em que estava, ajudava para alguma coisa. E o fato é que não perguntarei mais também, pois enfim, o tal dia em que ela dormiria e não acordaria mais fez-se concreto.

A grande questão nunca foi a morte: e sim encontrá-la morta. Sempre gostei muito da minha avó, mas não sou a maior fã de defuntos. Aquela coisa toda deles ficarem duros, aquela boca entreaberta, tem algo de ridículo nisso tudo. Morrer não parece lá o ápice da dignidade, sabe, o jeito que a gente fica, parece uma piada esquisita para quem olha. Bom, para o morto mesmo tanto faz, acho que não liga muito, fica lá tranquilão com as melecas escapando do nariz, dando os últimos peidinhos: morrer é o único momento da vida em que a natureza fisiológica não é incômoda: nem para você, e nem para os outros que estão muito ocupados tendo saudade para ficar fazendo tantos reparos. Mas ai de você se fizer isso vivo, ai.
Em partes, pensando bem, até gosto dos mortos: reparam menos, medem menos e não torram muito o saco com o que você está fazendo. Por isso vou tanto em cemitério: gente morta não palpita quando estamos ansiosos. E isso fica mais claro quando, andando pelas ruas da necrópole, topo com algum morador de cemitério (não de rua). E o que ele faz, como todo bom ser humano vivo? Começa a falar de coisas que você não entende em um momento que você não quer. Mas voltando ao fato, a minha vó um dia não acordou enquanto estava no banheiro. Demorou tanto, que tivemos a indelicadeza de perguntar:

- Ô vó! Morreu ai dentro?

E não é que ela tinha morrido mesmo? Ela sempre falou para tomarmos cuidado com essas brincadeiras. Tenho uma vizinha que diria "é o Karma". Sempre, sempre fala desse tal karma e eu tenho vontade de rolar de rir quando ela começa, nossa cair no chão, mas só quando estou bem e feliz acho o karma engraçado. Quando estou triste procuro prestar mais atenção, nossa, estudo e tal, fico preocupada com o curso do mundo fico repetindo " Om mane padma hum" no metrô e um grande dia ele retoma a graça de novo. O tal do karma é a ironia dos santos que a minha avó rezava, preciso dizer isso para minha vizinha, essa é a revelação. Falando nisso, outro dia perguntei para a minha vó, que rezava tanto, para onde ela achava que iríamos quando a gente morresse:

-Ai filha, não sei. Acho que a gente fica andando por aí...

Porra vó! Andando por ai, sério? Quase explodi de rir, não na frente dela, ou foi? Enfim, andar por ai era a última resposta que eu esperava receber, e ai, quando a encontramos sentadinha e mortinha lá no banheiro, só pude pensar se ela estaria andando por ai. Só espero que ela não tenha esquecido de subir as calças, coitada, andava muito esquecida a velha, uma senhorinha tão elegante, eternamente com a bunda de fora, já pensou?

Ah é, desculpe vó. Talvez isso não lhe importe tanto agora...

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

Poema noturno

Meu amor não é sempre bonito
nem benevolente.
Ás vezes morro de angústia
e ás vezes te mato de raiva, bem devagar
bem sofrido
e depois te revivo
na outra página, limpa.

Não rascunho as situações
-mentira.
A questão, é que não faz diferença
é essa mania de jogar fora, tudo o que foi pensado
pela janela, toda a razão escapa
por qualquer  fresta.

Até entendo quando desapontado
me perguntas o que passa
o que é, o que está
Mas a palavra, meu bem
é traiçoeira demais
para traduzir corpo em fala

E teus ouvidos míopes
enxergaescutam
parte de mim
e parte do teu estômago:
faminto-nauseado-sensível da acidez natural
das coisas que passam do ponto

Por isso quando questionas
só posso te devolver o silêncio
ensurdecedor
das explosões mudas
do sistema cardíaco-nervoso-respiratório-ósseo-muscular.
Pele é o que menos entendemos: ainda te assustas
da água que brota e escapa escorregando o corpo, e cai.

Deixa eu te dizer: o pensamento pode ser dito
pode ser fala, mas condensa, minimiza
deixa escapar
pequenos detalhes, esclarecedores em sua miudeza
que são os que não me deixam
que lhe abra a porta:
a porta que nem existe.


quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

Eu odeio meu aniversário

Feliz Aniversário o caralho. É o que tenho vontade de dizer todos os anos. Ai que época maldita essa de esperar o aniversário. Gosto muito, muito de aniversário, dos outros. Acho que não existe ocasião melhor para ver pessoas queridas, para celebrar, pular, enfim, fazer qualquer outra coisa que nos permitimos, do que no aniversário dos outros. Mas eu não gosto do meu. Nunca é motivo de felicidade, só de angústia, meu Deus, tá certo que quase tudo no mundo me angustia, nossa, é só me dar uns minutos, minutinhos tiquititinhos que pode ter certeza, eu vou fritar e reduzir tudo em um grande nada e demolir todas as possibilidades com um tanque de guerra Tchuuuuuf Tchuuuuf bombas explodindo tudo. Então, aniversário é uma boa época para fritar. E é uma atitude ingrata, nossa, sei que é, afinal, o amor, o afeto e todo o nhenhé, não se mede por um puto dia do ano, ele é construído com as delicadezas cotidianas, com as trocas, mas porra! Porque as pessoas esquecem de telefonar justo, JUSTO no dia em que você nasceu? Mas igual, e daí? hein? E DAÍ?! Eu mesma esqueço de ligar várias vezes, nossa, várias. Sou péssima para lembrar datas. E nunca foi por falta de bem querer. E quer data mais bizarra que essa, de aniversário? Uma homenagem a si mesmo "louvem-me porque há não sei tantos anos eu nasci". Agora me diz, sério, o que o mundo tem com isso, que eu nasci? Tirando a coitada da minha mãe que teve a barriga esgarçada e meu pai que teve que me sustentar, ninguém tem nada com isso. Na verdade nem eles, né, porque depois que eu nasci, fodeu, virei um "ser no mundo", sei lá o que isso quer dizer, mas é isso, um ser independente como os outros 7 bilhões que estão por ai, e os que nascem, todos os dias. Todo dia é aniversário de alguém, puta merda, que que tem de especial nisso? Mas ai, se as pessoas não lembram, vem esse sentimento, essa onda de renegação que se apodera e deixa as bochechas quentinhas de leve rancor: ai de mim que não sou querida. Ai de mim.Ninguém lembra dos outros 364 dias que foram muito legais e todo mundo lembrou de você. Só no bendito aniversário, que um pobre coitado esqueceu. Eu podia morrer no meu aniversário e ressuscitar no dia seguinte. Ganhar um vale-presente do hospital "passaporte para um coma". Mas deixem flores, por favor, para quando eu acordar eu ver que fui lembrada. Eu odeio meu aniversário, porque entro em estado de surto maluco psicótico depressivo. Quem teve a ideia de me parir, gente do céu no meu aniversário, gente do céu, vou celebrar o que? Mais um ano de vida? E esse ciclo de anos por acaso, por acaso tem alguma mudança significativa no comportamento, na forma como as coisas acontecem? NADA, NÃO INFLUEM EM NADA. Faço as mesmas coisas e fico angustiada na mesma época desde que tenho consciência de mim. Mas lembrem de mim, ai ai, odiaria ficar largada nesse dia que odeio, mas no seu limite, por favor, no seu limite. Aniversário não é legal, é tempo que passa, e que passa a todo momento, é só o lembrete: corre, corre que ele está correndo. Deve tocar Oswaldo Montenegro no fundo, para deixar tudo ainda mais dramático. Falando em música, e as músicas de aniversário? Tosco. TOSCO, ficar atrás de uma mesa com um bolo gosmento, fazer um desejo. Um desejo? Que que eu faço com um desejo? Porque ficam batendo palma? Alô, eu não ganhei o Nobel, só fiquei mais velha. Mas tem gente que se emociona tanto, né, acho bonito, eu também me emociono, ai, ganhar o primeiro pedaço, é bonito. É sempre da vó, né, ou tem aquelas pessoas que ficam em cima do muro e dão pro papai e pra mamãe, ou dão pra si. Tosqueira.

O fato é que eu odeio meu aniversário. Mas não se esqueçam que ele existe, porque eu odeio isso também.

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

Poeminha de metrô

Não acredito no que disse ontem
E provavelmente, tão logo, já não creia no que digo
direi
hoje.

Do pensamento faço versos tão substanciais quando dunas de areia
resistindo contra o vento.

(Sempre quis saber qual a massa do último suspiro:
Cálculos, calculo e não há produto final)

Intento em coisas que não entendo
Corrompo a clareza com palavras que não sei.

quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

Considerações finais

" Por falta da eternidade
juntaram dez mil velharias.
Um bedel bolorento tira um doce cochilo, 
o bigode pendido sobre a vitrine
(...)
A coroa sobreviveu à cabeça.
A mão perdeu para a luva.
A bota direita derrotou a perna"

Wislawa Szymborska

Já se pode ouvir o som do verme no armário roendo velhas fotos. Se alimenta com perversa tranquilidade do anonimato de entes já não tão queridos, de pequenas histórias que nada mais são além de silêncio: velhas bocas cheias de terra: pequenos recados que já não são para ninguém.

- Somem os retratos e edificam-se os símbolos, como diria certo ditado.

Pode-se dizer se eram pobres, se tinham fome. Quais eram as roupas, quais eram as joias, quais eram as peles. Como a cidade mudou. Nada mais. Legados ao esquecimento eterno das gerações. Não se fala do amor, das mazelas, dos pequenos feitos, do doce-amargo da vida condizente a todos que estão. Tudo isso se recolhe, e some com o esvair do corpo: quais são os segredos que contam um saco de osso?


Foram nada. E ainda o são.

quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

O doutor disse para não fumar

- A senhorita fuma?
- Pouquíssimo.
-Pouquíssimo? Não existe pouquíssimo quando se fuma. Por acaso você sabe qual é a quantidade que cada organismo aguenta ingerir de tório no corpo? Pode ser assim (e fez um gesto com as duas mãos para indicar algo pequeno, parecido com parênteses), ou pode ser assim (fez o mesmo gesto que lembrava parênteses, mas aumentando o espaço). A gente nunca sabe, então não existe quantidade segura, senhorita. A gente nunca sabe.

Confesso que fiquei um pouco atônita. Por qual raio de motivo você acha que eu me importo com a quantidade de tório no meu corpo? Hein? Eu nem sei o que é tório, isso existe na tabela periódica? Senhor, eu era ruim de química, nossa, era um inferno, por isso nunca poderia ser médica, imagina, ficar falando qualquer besteira de elemento para assustar os outros “Olha, cuidado, tem muito rubídio no seu...pé (para não dizer outra coisa)”. Imagine só se faria alguma coisa dessa. Ô doutor, pergunta para mim da onde vem meu gosto por tabaco. Que me importa o tório? Eu respiro monóxido de carbono, sofro de radiação solar e de tantas outras, a televisão derrete o cérebro, minha comida tem agrotóxico, a carne tem excesso de hormônio, os bolinhos tem gordura trans, a comida é enlatada, industrializada, o salmão é truta, o leite tem soda cáustica! SODA CÁUSTICA! Minha mãe usa essa merda para limpar azulejo, e eu enfio tudo goela a baixo. Vamos correr para ser saudáveis, em meio desse MONTE DE CARRO E ESCAPAMENTOS DE FUMAÇA FEDIDA. Vou parar de comer carne, e comer soja. E por acaso os produtores de soja, de verdura, são melhores que os, que os da indústria da carne? Doutor, ninguém quer saber de nada. NADINHA, e você está me torrando por causa do tório? Aposto, deve olhar vacina, esse moooonte de remédio, prozac, valium e pensar “ que boniteza, que boniteza como caminha a medicina, o ser humano. Viva o Rutherford, viva os átomos, o raio x, a genética...” Mas vou te dizer uma coisa, doutor: Não há o que ser feito por mim. Eu já estou morrendo, ouviu? M-O-R-R-E-N-D-O. Todos os dias morro um tantinho mais. Meu corpo vai se desintegrando a cada minuto, as células falecem e no primeiro tufo de vento elas se espalham no ar e viram sujeirinha. Nhenhé, toda pelo ar, pedacinhos de mim, de você, de todos nós. Morro desde o primeiro golfo de respiração quando nasci. Nasci morrendo já. A coisa é: o quanto demora para o fatídico fim. Que pode ser um tantinho, ou um tantão. E não é o tório, doutor, é a porra da vida! E quando eu penso nisso, fico angustiada, claro, e a gente nunca fala dessas coisas numa roda de conversa, na verdade, pouco falo em uma roda de conversa, ai doutor, se soubesse como sou tímida. Pareço uma Matriuska dentro de uma alcachofra, fechadinha fechadinha. Então, na ânsia de não me expor, acendo um cigarro. Já percebeu como as pessoas não te exigem respostas quando você fuma, doutor? Não, porque você não fuma. Deve responder tudo, “nhenhé sei de tudo”. Mas eu não. Então, de vez em nunca, tenho que acender um cigarrinho, e fico quieta e ai eu fico em paz e com a boca ocupada o suficiente para não falar. Ainda mais quando tem que enrolar o fumo, o tabaquinho na seda, demooooora. Gosto muito de história, doutor, me sinto em tempos passados enrolando fumo, como se evocasse uma ancestralidade e tal, toda essa coisa. Mas no fim das contas, que te interessa? Vai me falar de novo do tório e que tório mata, mas tudo mata, doutor, sinto lhe informar. Doutor,  estou morrendo, ai meu paizinho, estou morrendo. Neste exato momento, vejo eclodir de meus poros o sutil barulho da morte. Eu queria acender um cigarro e assoprar na sua cara, doutor e te encher de tório também. Ninguém liga para nada doutor, não há muito meio de ser tão saudável, não aqui nessa cidade, sem dormir,  achatados, CANSADOS. Violência urbana, pombas cagando na sua cabeça. Doutor, não há remédio que cure uma escorregada no chão molhado com uma cabeça batendo na quina. Tanto faz, você mesmo disse ai, com suas mãos, que a gente não tem como saber. Tanto faz. Tudo vive e morre no seu tempo, certo ou não. Essa é a ironia do universo. Aposto que nem o universo sabe o que é tório. Só você, para ficar torrando o saco.

- Bom, possui alguma doença?
-Não doutor
-Bom, então está tudo bem com a senhorita, você está bem e apta para as suas atividades.
-Estou é?
-Sim, sim.
-Obrigada então, doutor.
-De nada, mocinha! E cuidado com o tório.


...Filho da puta.