domingo, 24 de março de 2013

Cotidiano

Havia saído do trabalho, e por ter sido um dia difícil, me permiti uma regalia - sorvete. A coisa é: eu amo sorvete. Poderia viver de sorvete, tirem tudo de mim, menos sorvete. O gelado na pele já me estampa um sorriso, e sua massa colorida na vitrine é o suficiente para horas intensas de prazer. A escolha do sabor é dolorida, mas facilmente esquecida quando o eleito toca a língua. Sorvete para alegrar o dia, principalmente os modorrentos como aquele. Mas apesar de meu sincero afeto, é um hábito que tenho perdido, pois também é fato que sorvete engorda, e infelizmente, nesse aspecto sou uma puritana, e como tal, não queremos cometer excessos para depois nos culparmos durante a vida eterna.
Me permiti, um pequeno prazer. Entrei no conjunto nacional, e logo na entrada há um estande novo, com sorvete. Pistache e framboesa, por favor. Não era sensacional, confesso, o de pistache tinha gosto de licor barato, mas era verde verdinho como tinha que ser. Apoiei meu livro na bancada e tomei sorvete olhando para a rua. A entrada do prédio fazia uma moldura divertida para quem estava dentro dele, como eu. Pitoresco. Uma banca de jornal, crianças pedindo comida e leite, gente de terno passando rápido, um outro shopping do outro lado da calçada. Menino que quer ser menina. Menina que quer ser menino. Meninos e meninas que não querem ser nada, e meninos e meninas que querem ser muito, com suas pastas e roupas de gente importante. Todos de passagem, nenhuma figura se repete. Exceto o senhor com o clarinete, sentado em cima de um banco improvisado. Esse está lá todo dia. Toca Ravel, Shostakovich, Bach, Tchaikovsky, e sei lá mais quem. Nunca vi ninguém jogar-lhe uma moeda. Eu mesma nunca joguei, e nem nunca havia parado para escutar até então. Era tão comum já como qualquer prédio que ninguém nunca lembra o processo de construção, e um dia se assusta de ver que está lá. Queria terminar o sorvete logo...
O que quero dizer com essa narrativa? Absolutamente nada.

segunda-feira, 18 de março de 2013

Para a Tata

E faz dias que ensaio algo para te escrever. Leio Drummond, Vinicius e Camões, olho infinitas árvores durante meu percurso, árvores estas que sei serem tão de seu gosto. Remexo o pouquinho de você que ainda existe no quarto, vejo fotos, ouço seus discos, que se antes eram gestos de transgressão, agora são de saudade.
Mulher, queria sinceramente lhe escrever algo, mas não consigo. Mas nunca, ouviu? Nunca cogite que isto seja falta de amor - se me engasgo nas palavras, é por excesso.

sexta-feira, 8 de março de 2013

Descompasso

Havia um senhor no metrô com vitiligo. As manchas subiam pelas suas mãos e se perdiam na manga da camisa. Qual será a sensação de ter o seu corpo se revoltando contra você? Espero com certa ânsia isso, não é algo que se diga, mas espero ansiosamente isso. Um protesto celular que decida não mais produzir, e ir presenciando estas camadas morrerem. Eu não pertenço a este corpo, e ele sabe muito bem. Existe em mim essa sensação, sempre presente, de que alguém me emprestou e esqueceu de tomar de volta. Então espero, com um breve receio, o dia que ele se revolte. Ou o dia que eu me revolte antes e abra a força, que o lote de fissuras, para ver se escapo por entre as aberturas.
Acordo todo dia e fico nua diante o espelho, pois tenho que me reconhecer todos, todos os dias. Sinto a boca se movimentando dizendo algo como "Olha só o que eu não sou".