segunda-feira, 14 de julho de 2014

(Amar)go

- Fodeu.

E tinha certeza que havia algo errado. Puxou da memória as possibilidades para tal coisa terrível que tinha certeza que iria comê-la aos pouquinhos até virar um nadinha intragável, até desmanchar como um balão furado, como um mamão na fruteira que ninguém come pois há frutas bem melhores que mamão. Era ela naquele fatídico momento do mundo, dando-se conta que estava condenada a padecer de uma doença tão incômoda e tão devastadora e tão amoral que iria obrigá-la a retirar-se da vista dos outros e isolar-se como uma ermitã nas pseudo-montanhas de sua cidade com uma arvorezinha ou outra que tomba na estrada em épocas de chuva muito forte e impede o acesso. Ela deveria ter impedido o acesso desde o começo, de um, de todos, pois agora via-se ali, invadida, contaminada e tão perversamente retirada e arrancada de si (pois agora era a casa de um vírus-bactéria-ferida ou algo parecido que só iria se multiplicar e desalojá-la do que agora considera templo ((pois antes odiava, desprezava e chorava copiosamente pela má-sorte de ser como era)) ou o único que lhe pertence), que quis encarecida e devotamente acabar com todo o dramalhão logo. A casa viria abaixo por vontade própria; não ficaria à espera de um bichinho desgracento, de uma dorzinha ardida que resolvesse trabalhar e mordiscar célula por célula, tulmorizar pedaço por pedaço, deixando no caixão um cadáver feioso e desumano de cor arroxeada. Era essa a memória que tinha dos que padeciam de tal doença ou coisa parecida: em geral, cadáveres não são lá muito bonitos, não importa, na verdade, pois já estaria morta, mas aturar os comentários de como foi e como estava, ai, isso não. Mas como, como isso tinha acontecido? Pensou em um e outro que trombou por ali, no amorzinho, no quase, quanta gente passou, e foi deixando um pouquinho, cada um deixando um pouquinho, queria devolver urgentemente estes pouquinhos, uma malinha para cada um que passou " Toma, leva, é seu, não meu, seu, SEU, responde a outra pessoa esse pronome, leva", mas como separar? E tem coisa que já era tão dela: o jeitão de falar, o jeitão de andar, o jeitão de vestir. E tinha certeza que alguém havia esquecido um pedaço do corpo nessa de esquecer as coisas, deixou lá, escuro, na origem de tudo, cravado em um músculo pulsante, para que engravidasse da morte. Tinha certeza, apesar de não lembrar. Tinha certeza, apesar de não trocar, tinha certeza, apesar de odiar toques. Tinha certeza. Estava tão contaminada, tão dolorida, era uma dor tão real, tão certeira, que só podia ser a morte anunciada: estava contaminada de vida pelo outro: a tão bem-vinda a sondava e destruía: uma vida com contagem: deseterna e fadada aos devires. Sabia disso quando acordou. Pensou nos seres queridos, nos não tão queridos, nos que ainda seriam queridos,nas explicações e nos avisos: as desculpas por se deixar invadir. No espelho já se via vulto: a imagem descarnada de quem já está de partida. Meteu-se nas vielas, pois, antes de retirar-se assim, meio à francesa das coisas, tinha que ter certeza:

- Muito bem, já lhe chamam pro resultado.

O braço todo picado, ela e mais 3 caras, a salinha de espera tocando algo que chamava lounge, foi o que um deles disse. Que porra de música chama lounge, isso não se faz com quem espera algo tão sério, música lounge e balinha de gengibre, queria chupar o pote inteiro de balas, queria chorar e já pensava em como ia distribuir seu tão pouco até anunciarem seu nome. Sentiu um breve espasmo e morreu. O que se moveu dali em diante foi qualquer coisa que receberia a notícia: ela quis ser mais esperta e morreu antes.

-Muito bem, tudo certo, saúde impecável: nada foi detectado no seu sangue. Nem no seu estômago, nem no seu rim, nem no coração, nem no seu intestino, nem no seu pulmão e joelho, nem na sua coluna, nem no pâncreas, muitos menos no fígado. A narina direita é um pouco maior que a esquerda, mas isso é normal, sua mordida é cruzada, mas você sobreviverá, a tinta do seu cabelo é tóxica, mas ai é só raspar, sua pisada é torta e precisa de um pouco de sol. A cabeça só, que demonstrou algum tipo de atividade anormal
- É um tipo de idiotice, sempre me acontece.
-Ah é!

Antes de pisar para fora daquele lugar infernal, deu uma bela olhada na rua e se sentiu deprimidamente tão parecida. O amontoado todo da cidade lhe causou a breve recordação de quando era apenas um terreno baldio: bem antes da pretensão de construir algo e de ser atravessada, invadida: contaminada. E como não?
Colocou o primeiro pé na calçada tendo que lidar com a constatação e a certeza triplamente mais terrível que era a de estar completamente, transbordantemente, irritantemente e (amar)gamente viva.


sexta-feira, 4 de julho de 2014

Tem dor que dói
tem dor que arde
tem dor que se estabelece
e tem as que passam rápido
que não são a maioria.
Tem dor chorada
Tem dor engasgada
e tem dor que é só dor
silenciosa, lá em algum canto
espreitando ansiosa
na margem do muro
a hora de aparecer, sempre atrasada
diluída no riso
um pouco frágil
tentando ser
em espaços que não lhe cabem.