terça-feira, 30 de dezembro de 2014

sem título

Mas o que se pode fazer quando o amor é negado? Cabe-nos apenas, resignados, conviver com a ausência aterradora, e a espera de um dia acordar e sentir retirado o pedregulho de cima dos órgãos, pois ás vezes parece mesmo que vamos sucumbir em uma espécie de afogamento seco. Mas passa. É um erro comum atribuir eternidade a todo tipo de afeto e seu reverso, e se, em alguma instância a eternidade existe para nós, seres vulgares, está impressa em algum aparato da memória do mundo, mas sujeita ao desacordo e trânsitos que são inerentes ao próprio, sabe, mundo. Ao amor negado, só resta a melancolia, quase mortal, mas que se dissipa, a qualquer momento: indefinido. E quando acontecer, aquele choro sentido vai ser lembrado com certa graça, como um evento distante, um eu descolado. E a ausência, caracteristicamente irresolúvel, cede um pouco de seu espaço, sabe, para o amor: o novo.

segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

Pavanas

5,6,7,8
Meio giro/encontro
demi-plié
sorriso.

Meu e seu

Port de Bras
quarta fechada
erro: mãos no rosto
Repreensíveis no palco
no palco, mas ali.
Deram-se as mãos?

Não.

5,6,7,8
Um pas de deux mal ensaiado
marcações de lugar
Fouette/nos olhos/peso peso peso peso
Despacito
Alguém disse: 5,6,7,8
Attitude: não só nas pernas
Convoca o corpo: Abdômen abômen abdô, abaixa o externo! abaixa o externo! abaixo o externo!

A B A I X A O E X T E R N O

Abaixa. Mas eu te vi. AA1 BB1
Ritmo: 5,6,7,8
((((((((((((golfadas de ar: )))))))))))))
Era quase emocionante, juro que sim
SABE AQUELA COISA, de ritmos internos?
Pulsações cardícadas/retorno intravenoso
escapam décimos de segundo 5,6,7,8
imperceptíveis
o eram, eram sim.


Tan dan dan Tan dan dan
valsa de cravo
pas de Boureé, sempre para a esquerda
E então:



(por ora sentemos, fiquemos sem os sapatos)
((Só por ora,sentemos e fiquemos sem os sapatos))
(((instantes só, para não sujarmos o chão de rua)))
((((e de avenidas e de alamedas desbotadas de outono))))
(((((é mais suave:5,6,7,8)))))


Ninguém me disse mas essa é a contagem errada.

quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

Conversas de celular

Ela: do que chamar?
Ele: pinto
Ele: pau
Ele: pica
Ela: caralho
Ela: Nossa!
Ele: quanta graça!
Ela: Que obsceno
Ela: Não entendo
Eles e Elas: O que?
Ela: E se é inominável?
Ele: então os dois o são

Silêncio

Ela: o que se pode dizer?
Ele: Tem quem se ofenda
Ele: o meu sempre foi assim
Ela: Assim como?
Ela: Assim com nome?
Ela: Assim do jeito que vi?
Ele: Assim
Ele: do que falam?
Ela: de inomináveis
Ele: Dos que saltam pra fora
Ela: Dos que são pra dentro
Ela: E se disser: racha?

Silêncio

Risos

Ele: Que obsceno!
Ela: quanta ousadia
Ela: colocar nome?
Ele: dizer o nome?
Eles e Elas: PRONUNCIAR
Ela: assim, audível
Ela: assim, legível
Ele: quanta graça!
Ele: meu corretor corrige as falhas
Ela: de português?
Ela: das coisas: buceta vira brusqueta
Ele: Corrige o que tem que ser corrigido
Ela: o que não deve ser falado
Ela: nem escrito
Ele: nem nomeado: só no escuro

Eles e Elas: Olhem só! Achamos fotos!
...baixando arquivos.

quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

Viagem de ônibus

Não subi isenta naquele dia no ônibus que me traria de volta: e subi os degraus com um tom cômico de quem quer virar e sair correndo, sabe? correndo numa ânsia ÂNSIA de gritar, gritar muito uma alegria, um êxtase violento rasga-pele um riso alucinado e rodar e rodar e rodar e rodar e rodar mas não rodei, nem gritei só subi com vontade de descer e sentei do lado de um cara que não era o cara que eu queria sentar do lado, era um cara qualquer, e naquele momento qualquer um que sentasse não seria quem eu queria que sentasse porque ELE estava lá em alguma parte rodando e eu que quis tinha então que aguentar esses qualquer um que mandam mensagens avisando que estão voltando, li tudo, meticulosamente e corrigindo as sentenças daquele português que não era o português que tanto me fazia tremer de felicidade, a boca que tanto dizia coisas que me atrapalhavam: justo eu que nunca me atrapalho, estava ali querendo descer, o tempo inteiro, quase disse para o motorista parar, mas iria atrapalhar a viagem de outros 30 e tantos que queriam mesmo voltar, e eu não atrapalho, devia só voltar, quieta e feliz, rever minha cama e ouvir minha música favorita de todos os dias que não pude ouvir, ou não precisei: na verdade esqueci, e não lembro qual era a minha música favorita agora: sei só que nunca odiei tanto a estrada e quis que o ônibus tombasse pra eu sair correndo, sei lá por qual caminho, quais são os caminhos que nos levam pra casa? Adeus, e lá em casa alguém entenderia se dissesse que lá não é mais lá, porque eu quis descer do ônibus e quis me plantar na rodoviária como aqueles personagens de filme que esperam alguém vir buscá-los e tomam um café quente, que eu nunca tomaria pois odeio café? mas nesse momento até este sacrifício valeria: o café seria doce, e eu repetiria comigo é doce, é doce e é doce, sem saber o que era enfim, tão doce que me valesse os centavos gastos em um prazer de assistir o ônibus ir embora sem mim: olha lá onde eu não estou, o coração palpitando forte acenando para o banco vazio. Mas não foi o que aconteceu: subi, sentei e fui, sem estar isenta, com um velho conhecido entre as mãos, o burburinho das mil mariposas invisíveis, isso que há muito não se apresentava, que ressurge sempre sem nome: ou que apenas não ouso falar, carregado entre o umbigo e a coxa, fazendo cócegas que dão vontade de chorar baixinho com um meio sorriso para não o acordar, o cara do lado que estava sim muito feliz por ter subido no ônibus. Sussurrei no seu ouvido, entende? Para compartilhar qualquer coisa, que queria ter descido, mas acho que ele não se importou.