terça-feira, 4 de agosto de 2015

- Você sabe né, que ela não vai viver para sempre.
E ai eu não consegui olhar muito bem para a Mabôzinha depois disso. Mabôzinha é minha gata, recém-nascida e recém ganha, fofa para morrer. Existe uma reação engraçada até no ser mais carrancudo quando vê um filhote dando patada nas coisas, e nem o choro contínuo, miúdo e estridente é capaz de causar tanta irritação. É claro que eu sei que ela não vai viver para sempre, e respondi daquele meu jeito insuportável no qual viro os olhos para cima meio impaciente. É claro que eu sei (e essa afirmação veio um pouco mais baixa, como se quisesse deixar ela em segredo dentro de mim). E desde então, não consigo olhar muito tempo para a Mabô, e acho que ela não deve ficar muito no colo mesmo, e tem que aprender as coisas rápido, pois nosso tempo é rápido. E já projetei os próximos...14, 15 anos que ela vai viver comigo e vai morrer, e me assombro com a possibilidade de que ela vá acompanhar tanta coisa, e depois, não mais que de repente, já não acompanhe mais.
Não é bem o gato em si, entende? Mas fui apresentada à morte poucas vezes, e sempre de maneira muito tímida. Tenho uma avó que faleceu há poucos meses, mas que não a vi mortinha de tudo. Tenho uma gata que não faleceu sozinha, né, a gente sacrificou? (adoro como a ideia de sacrifício vem parar nas questões modernas, que forma de se livrar da culpa: a gente decidiu que era melhor que ela morresse, né, ninguém deu a gata em sacrifício de ninguém). E mais uns conhecidos de conhecidos. Tudo muito limpo, muito racional, como eu sempre entendi a morte: racional e óbvia. Mas ai, sabe, a mabôzinha. Mal nasceu e já viraram a ampulheta da coitada. Nasceu morrendo. E que mortes são essas também, não? As grandes mortes e as pequenas mortes que passam desapercebidas e silenciosas na desatenção às solas do sapato. Se o que piora a morte é o afeto, o que fazer? Existe alguma maneira de viver a morte? As psicocoisinhas diriam da elaboração do luto, o entendimento da perda, que enfim, é outro termo engraçado para ser usado: perder. O português é um idioma problemático, mas enfim. Acho que a gente se prepara para a morte do outro depois porque ninguém quer senti-la antes: que complicadas seriam as despedidas se vivêssemos na intermitência de uma tragédia. Mas a graça, é que quando enfim o vivo vira morto, todo mundo vem com aquela ideia de “eu senti”. É benzinho, claro que sentiu, porque a gente sente todos os dias a possibilidade. É que é isso né, a gente se distrai um pouco no aguardo até sermos pegos sem surpresa: ai a água bate na bunda, e todas as mensagens suicidas de como devemos aproveitar os dias como se fosse o último lotam nossas mídias sociais em discursos de enorme aprendizado. São breves, quase sempre, por termos que nos distrair de volta, depois, no nosso devaneio de eternidade, e ai, anedoticamente, voltamos a jurar nossas coisas eternas de 5 minutos. É que, tão camuflada, tão ignorada como é a morte, apesar dos desastres e infortúnios cotidianos, só cabe mesmo o assombro da constatação que sim, eu sei que ela vai morrer.

segunda-feira, 4 de maio de 2015

E um dia 
não mais que um dia 
já nem lembro se de sol ou nublado
(tanto faz o tempo lá fora)
já nem lembrava que sofria
e meu coração enternecido
parece que já previa
e arrumava a cama
para você deitar.

Palomares

Palomar: Palomas ao mar. Palavra de origem hispânica para denominar pomba. Palomar: Pombas ao mar. Seres que não são aptos ao nado: anatomia discutível: penas quilhas cloacas duas pataspés com garras para se apoiar. Observatório. Antes em galhos, agora na rede de fios elétricos. Palomas não são seres aquáticos. Palomas não são seres do mar. Palomas não são seres de grandes vôos. Palomas não são muitas vezes mais que incômodo: mas são revoadas. Palomar: verbo intransitivo, 1ª pessoa do indicativo, conjugação regular: a cada 25 dias certeiros pela manhã. Passível de conjugação em todos os pronomes: singulares e plurais. Ato de mergulhar sem ser apta ao mergulho; ato de atirar-se a água sem saber nadar; ato de se fazer rasante na quebra da onda; afundar-se superficialmente e ser levada para borda; mergulhos rasos; ato de Palomar. Flexiona-se muitas vezes como substantivo: comum.
Paloma observava as palomas palomando nos palomares.

segunda-feira, 30 de março de 2015

Máquinas de escrever não fazem notas de rodapé

Maceto o dedo contra a tecla manchando todo o papel de uma coloração cinza-azulado: letras trocadas, encavaladas pela máquina que resiste à violência com que imprimo cada palavra que atônita salta ao papel: a palavra bruta. Ah benzinho, é com essa mesma força que adoraria cravá-las em seu peito, marcar seu rosto de azul-rubi, afundar a carne de suas bochechas com os sulcos da marca metálica de uma máquina velha, coisas como: “não devo me poupar”. Poderia lhe explicar no canto da página de onde surge tal vontade, mas você sabe: máquinas de escrever não fazem notas de rodapé.

terça-feira, 3 de março de 2015

Amarelo

Eu não acredito em resiliência: de maneira nenhuma. E já não tenho saco para amores barrocos. Ou para platonismos, ou romantismos, ou qualquer tipo de sentimento retirado de livros: eu quero as entrelinhas dos poemas: os espaços cheios de silêncio: significativos entre uma palavra e outra, entre uma respiração e outra durante nossa pequena morte. Verbos intransitivos, tempos adverbiais: diria até pronomes possessivos. Amor concreto que nem pedra, tudo por não crer em resiliência: como poderia voltar a ser o que era, até o dado instante em que nos cruzamos no carpete áspero da cidade, do mundo: a força do acontecimento dos anos para que eu estivesse exatamente ali: a trança de uma entidade caprichosa brincando com a gente e nossos coraçõezinhos, tão desmedidos, tão carne amansada buscando pormenores felizes: como ser o que era, e dizer: posso voltar para mim? Se já não há mais mim, se me vou escapando pelos poros, se me derramo ao subir as escadas, se me digo Adeus a cada suspiro causado pelo você que se instalou nas minhas articulações. E fico explodindo em ânsia a todo minuto, em arroto de mariposa: a impaciência antítese do oráculo. Como ficar no papel, se já lhe lambi o céu da boca?

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

São versos espasmódicos os que me saltam agora, como se tivessem acordado de madrugada pelo som dos disparos no escuro: qualquer coisa como um estalido metálico anunciando o momento da largada, mas eu não corro: já não há joelho para longos tiros e nem fôlego para tão grandes distâncias em tão curto tempo. Só a anunciação: 
-Está atrasada. 
É que meu pulso nunca foi propriedade de relógio: tenho as horas, os dias, meses e anos marcados pela distância dos afetos: a natureza do meu tempo parte de outra grandeza: a do detalhe. E nunca fui dada às grandes corridas, principalmente quando não sei para qual lado corro: sempre para o lado contrário: sempre uma corrida de um. Por vezes me venci, mas me alcançaram os resíduos perdedores, todos chegando aos poucos, colando de volta, alongando os tornozelos: eles me encontraram. Então, versos que se espreguiçam na beira da janela procurando a origem do estampido são os que fervilham agora, em uma vontade de ignorância, vontade de giro: vontade de só seguir pé direito e pé esquerdo em uma sequência infinita sem pressa contra o chão. Eu quero tanto um tempo advérbio.