segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

A vida continua, até breve.

Como a minha avó já era velha quando eu nasci, aconteceu de eu ficar esperando o dia em que abriria a porta do quarto dela, tentaria acordá-la e a encontraria morta. Não que isso seja uma vontade, claro, mas é que depois de ver tantas vezes a cabeça dela despencando de sono nos momentos mais repentinos, fica um tanto difícil não pensar nisso. Certa vez ela dormiu no genuflexório que tinha no quarto onde rezava para o Santo Expedito, São Bento, Santo Antônio, Santa Rita, Santa Barbára, Nhá Xica de Baependi, Jesus menino, Jesus Adulto, Sant´Anna e Zé Pilintra. Na verdade, não a culpo: duvido que haja alguém que não durmiria se tivesse que rezar para tanta gente. A única coisa é que tombaria para o lado, não para frente como ela, os pézinhos para o alto com as meias auxiliares de varizes toda frouxa na canela. Nunca perguntei se a meia, no estado em que estava, ajudava para alguma coisa. E o fato é que não perguntarei mais também, pois enfim, o tal dia em que ela dormiria e não acordaria mais fez-se concreto.

A grande questão nunca foi a morte: e sim encontrá-la morta. Sempre gostei muito da minha avó, mas não sou a maior fã de defuntos. Aquela coisa toda deles ficarem duros, aquela boca entreaberta, tem algo de ridículo nisso tudo. Morrer não parece lá o ápice da dignidade, sabe, o jeito que a gente fica, parece uma piada esquisita para quem olha. Bom, para o morto mesmo tanto faz, acho que não liga muito, fica lá tranquilão com as melecas escapando do nariz, dando os últimos peidinhos: morrer é o único momento da vida em que a natureza fisiológica não é incômoda: nem para você, e nem para os outros que estão muito ocupados tendo saudade para ficar fazendo tantos reparos. Mas ai de você se fizer isso vivo, ai.
Em partes, pensando bem, até gosto dos mortos: reparam menos, medem menos e não torram muito o saco com o que você está fazendo. Por isso vou tanto em cemitério: gente morta não palpita quando estamos ansiosos. E isso fica mais claro quando, andando pelas ruas da necrópole, topo com algum morador de cemitério (não de rua). E o que ele faz, como todo bom ser humano vivo? Começa a falar de coisas que você não entende em um momento que você não quer. Mas voltando ao fato, a minha vó um dia não acordou enquanto estava no banheiro. Demorou tanto, que tivemos a indelicadeza de perguntar:

- Ô vó! Morreu ai dentro?

E não é que ela tinha morrido mesmo? Ela sempre falou para tomarmos cuidado com essas brincadeiras. Tenho uma vizinha que diria "é o Karma". Sempre, sempre fala desse tal karma e eu tenho vontade de rolar de rir quando ela começa, nossa cair no chão, mas só quando estou bem e feliz acho o karma engraçado. Quando estou triste procuro prestar mais atenção, nossa, estudo e tal, fico preocupada com o curso do mundo fico repetindo " Om mane padma hum" no metrô e um grande dia ele retoma a graça de novo. O tal do karma é a ironia dos santos que a minha avó rezava, preciso dizer isso para minha vizinha, essa é a revelação. Falando nisso, outro dia perguntei para a minha vó, que rezava tanto, para onde ela achava que iríamos quando a gente morresse:

-Ai filha, não sei. Acho que a gente fica andando por aí...

Porra vó! Andando por ai, sério? Quase explodi de rir, não na frente dela, ou foi? Enfim, andar por ai era a última resposta que eu esperava receber, e ai, quando a encontramos sentadinha e mortinha lá no banheiro, só pude pensar se ela estaria andando por ai. Só espero que ela não tenha esquecido de subir as calças, coitada, andava muito esquecida a velha, uma senhorinha tão elegante, eternamente com a bunda de fora, já pensou?

Ah é, desculpe vó. Talvez isso não lhe importe tanto agora...

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

Poema noturno

Meu amor não é sempre bonito
nem benevolente.
Ás vezes morro de angústia
e ás vezes te mato de raiva, bem devagar
bem sofrido
e depois te revivo
na outra página, limpa.

Não rascunho as situações
-mentira.
A questão, é que não faz diferença
é essa mania de jogar fora, tudo o que foi pensado
pela janela, toda a razão escapa
por qualquer  fresta.

Até entendo quando desapontado
me perguntas o que passa
o que é, o que está
Mas a palavra, meu bem
é traiçoeira demais
para traduzir corpo em fala

E teus ouvidos míopes
enxergaescutam
parte de mim
e parte do teu estômago:
faminto-nauseado-sensível da acidez natural
das coisas que passam do ponto

Por isso quando questionas
só posso te devolver o silêncio
ensurdecedor
das explosões mudas
do sistema cardíaco-nervoso-respiratório-ósseo-muscular.
Pele é o que menos entendemos: ainda te assustas
da água que brota e escapa escorregando o corpo, e cai.

Deixa eu te dizer: o pensamento pode ser dito
pode ser fala, mas condensa, minimiza
deixa escapar
pequenos detalhes, esclarecedores em sua miudeza
que são os que não me deixam
que lhe abra a porta:
a porta que nem existe.


quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

Eu odeio meu aniversário

Feliz Aniversário o caralho. É o que tenho vontade de dizer todos os anos. Ai que época maldita essa de esperar o aniversário. Gosto muito, muito de aniversário, dos outros. Acho que não existe ocasião melhor para ver pessoas queridas, para celebrar, pular, enfim, fazer qualquer outra coisa que nos permitimos, do que no aniversário dos outros. Mas eu não gosto do meu. Nunca é motivo de felicidade, só de angústia, meu Deus, tá certo que quase tudo no mundo me angustia, nossa, é só me dar uns minutos, minutinhos tiquititinhos que pode ter certeza, eu vou fritar e reduzir tudo em um grande nada e demolir todas as possibilidades com um tanque de guerra Tchuuuuuf Tchuuuuf bombas explodindo tudo. Então, aniversário é uma boa época para fritar. E é uma atitude ingrata, nossa, sei que é, afinal, o amor, o afeto e todo o nhenhé, não se mede por um puto dia do ano, ele é construído com as delicadezas cotidianas, com as trocas, mas porra! Porque as pessoas esquecem de telefonar justo, JUSTO no dia em que você nasceu? Mas igual, e daí? hein? E DAÍ?! Eu mesma esqueço de ligar várias vezes, nossa, várias. Sou péssima para lembrar datas. E nunca foi por falta de bem querer. E quer data mais bizarra que essa, de aniversário? Uma homenagem a si mesmo "louvem-me porque há não sei tantos anos eu nasci". Agora me diz, sério, o que o mundo tem com isso, que eu nasci? Tirando a coitada da minha mãe que teve a barriga esgarçada e meu pai que teve que me sustentar, ninguém tem nada com isso. Na verdade nem eles, né, porque depois que eu nasci, fodeu, virei um "ser no mundo", sei lá o que isso quer dizer, mas é isso, um ser independente como os outros 7 bilhões que estão por ai, e os que nascem, todos os dias. Todo dia é aniversário de alguém, puta merda, que que tem de especial nisso? Mas ai, se as pessoas não lembram, vem esse sentimento, essa onda de renegação que se apodera e deixa as bochechas quentinhas de leve rancor: ai de mim que não sou querida. Ai de mim.Ninguém lembra dos outros 364 dias que foram muito legais e todo mundo lembrou de você. Só no bendito aniversário, que um pobre coitado esqueceu. Eu podia morrer no meu aniversário e ressuscitar no dia seguinte. Ganhar um vale-presente do hospital "passaporte para um coma". Mas deixem flores, por favor, para quando eu acordar eu ver que fui lembrada. Eu odeio meu aniversário, porque entro em estado de surto maluco psicótico depressivo. Quem teve a ideia de me parir, gente do céu no meu aniversário, gente do céu, vou celebrar o que? Mais um ano de vida? E esse ciclo de anos por acaso, por acaso tem alguma mudança significativa no comportamento, na forma como as coisas acontecem? NADA, NÃO INFLUEM EM NADA. Faço as mesmas coisas e fico angustiada na mesma época desde que tenho consciência de mim. Mas lembrem de mim, ai ai, odiaria ficar largada nesse dia que odeio, mas no seu limite, por favor, no seu limite. Aniversário não é legal, é tempo que passa, e que passa a todo momento, é só o lembrete: corre, corre que ele está correndo. Deve tocar Oswaldo Montenegro no fundo, para deixar tudo ainda mais dramático. Falando em música, e as músicas de aniversário? Tosco. TOSCO, ficar atrás de uma mesa com um bolo gosmento, fazer um desejo. Um desejo? Que que eu faço com um desejo? Porque ficam batendo palma? Alô, eu não ganhei o Nobel, só fiquei mais velha. Mas tem gente que se emociona tanto, né, acho bonito, eu também me emociono, ai, ganhar o primeiro pedaço, é bonito. É sempre da vó, né, ou tem aquelas pessoas que ficam em cima do muro e dão pro papai e pra mamãe, ou dão pra si. Tosqueira.

O fato é que eu odeio meu aniversário. Mas não se esqueçam que ele existe, porque eu odeio isso também.

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

Poeminha de metrô

Não acredito no que disse ontem
E provavelmente, tão logo, já não creia no que digo
direi
hoje.

Do pensamento faço versos tão substanciais quando dunas de areia
resistindo contra o vento.

(Sempre quis saber qual a massa do último suspiro:
Cálculos, calculo e não há produto final)

Intento em coisas que não entendo
Corrompo a clareza com palavras que não sei.