segunda-feira, 17 de novembro de 2014

Cabelos

Doía naquele ponto de sempre, na lateral direita do crânio, meio atrás do olho querendo escapar para a orelha (ou pelo menos era assim que tentava explicar para os muitos médicos quando lhe pediam para localizar a dor (( certa vez lhe dispuseram até um crânio, e pediram que cravasse com uma agulha a parte do cérebro que parecia doer, mas não lhe pareceu lógico que fosse algo no cérebro, em definitivo)), e incerta respondia, meio débil: entre olho e a orelha). Como se o bumbo de uma sinfonia rugisse dentro da caixa craniana, tentava se distrair do mal estar tão conhecido, esticando com as pontas dos dedos um cacho um tanto ressecado de seu cabelo que já não se entendia loiro-ruivo-castanho. Achava, com uma ingenuidade sincera, que seus cachos eram fruto de sua mente enrolada, e por isso seu cabelo nascia da forma que nascia: pensamentos revoltos, elétricos e espiralados, impossíveis contra qualquer pente fino. Sentia quando iam nascer, os fios, e lhe irrompiam da cabeça como se estivessem se empurrando e, lânguidos, se enroscassem com outros no seu mar de ideias confusas, que, quando sucumbiam à força do mundo, despencavam cadavéricos no chão, já não tão enrolados: retos em alguma certeza que foi abandonada: nunca olhou para trás, a vassoura de palha empurra tudo pra fora junto com o pó (mas são sombrios os fios que insistem em aparecer durante a manhã depois de um sonho intranquilo, em cima do travesseiro). De resto, pacientemente esperava que a dor passasse, e nunca disse para os doutores, mas tinha certeza que sua dor era disso, dos fios se empurrando, agora, o que era esse fio, ou fios, mechas inteiras que lhe faziam doer exatamente nesse ângulo de encontro entre olho e orelha, vista e ouvido, entre a enxerga e a escuta...Sabia que o lado direito cuida de qualquer coisa relacionado a, o que mesmo? Lado simbólico? Religiosité? Mas não era uma mulher (?) uma mulherzinha (?), uma moça (?) uma

- garota

uma garota da lógica?

: Tinha resposta pra tudo, mesmo que seus fios denunciassem a incongruência de seus pensamentos. Só não tinha pra tal da dor que insistia, religiosamente, em pulsar, como se quisesse abrir espaço no crânio com um martelo, bem ali, entre o olho e a orelha. Chegou a fantasiar que era uma mariposa, com o negrume do mundo nas asas, que estava se empurrando do casulo-osso formada pelas sinapses, pronta para debandar, uma grande mariposa negra saindo dos cabelos, ia pousar leve, ruflando as longas asas anoitecidas, uma noite sem ponto de luz (talvez um carrapato de strass apenas, preso por um breve acaso do mundo) fazendo uma saudação. Mas isso não faz sentido, assim como as pílulas de Frei Galvão que tomou antes de dormir, três de uma vez só, o papel-pílula-oração, e agora estava ali, com a cabeça doendo no ponto entre a vista e o ouvido, com overdose de pílula benta: sê cuidadoso, pecador, com seus pensamentos. Santa misericórdia, como acreditar em papel escrito: seja ele do Frei, do Freud ou do Rimbaud.

A essa altura, já virava o rosto contra a parede, fingindo fazer graça. É que doía,naquele pontinho entre a enxerga e a escuta, uma vontade de cegueira e surdez. Ou o contrário?