quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

É por gostar tanto que se mantém em pé. Encaixa cada pedaço numa perfeita verticalidade, cada parte da coluna para não se deixar tombar. E assim se mantém em processo de doação até se machucar, e até tudo aquilo que retirou fazer falta.

domingo, 12 de fevereiro de 2012

Com sua licença, Carlos Drummond de Andrade

Quando nasci um anjo desatento
Desses, que se distraem no primeiro som
Me olhou e infelizmente
esqueceu de me abençoar com qualquer coisa

Numa situação financeira desagradável
ganhei roupa e ganhei sapato
Mas a velha e boa fralda faltava, e fiquei assim enrolada na merda
até que encontrassem uma farmácia

Merda é uma questão teológica
E eu já do divino ventre entendia que
para ser humana
a merda não me abandonaria

Aprendi cedo, a destapar o corpo e por o umbigo no sol
e cedo aprendi a ter vergonha
mas não tão cedo aprendi
que esconder-se na vergonha é mais feio que não tê-la

Fiz da solidão o meu presente
como já dizia grande filósofo
Só esqueci de constatar que o presente do pensador
só era possível sendo miserável

Me recosto no canto e vejo
braços pernas bocas
numa dança desconexa
que meu corpo não participa

Danço sozinha
algum ritmo estranho, danço assim
de olhos fechados tateio no escuro
buscando sentido pra tudo isso.

De falar do processo

Fazendo um grande resumo, existe uma passagem interessante da escultura neoclássica para as experimentações que dariam o primeiro engate pra pensar em uma manifestação tridimensional moderna. Os grandes murais neoclássicos, além de estarem presos a uma narrativa histórica, que acomete a todos os seus personagens representados, mantém tudo preso à sua superfície. É uma existência quase que pela metade, e se quisessem mostrar a tridimensionalidade do corpo, as partes eram seccionadas em 2, 3, para se ter a noção de um todo. É Rodin, quem começa a modificar esta situação criando personagens que, mesmo fazendo parte de um mesmo contexto, pareciam lidar com aquilo com extrema particularidade. Eram independentes daquele espaço que os ligavam, e ali tínhamos corpos que se projetavam para fora, que pareciam que saiam da parede e aos poucos iam se criando, mergulhavam no espaço, desprendidos de qualquer realidade anatômica, existindo quase que para si apenas. E as imperfeições das esculturas começaram a ser menos mal vistas, pois faziam parte de um processo.
As obras do neoclássico são por excelência esteticamente atraentes. É o tipo de obra que as pessoas geralmente consideram agradáveis de se observar, aquele ideal antigo retomado em cada parte simetricamente representada. Mas tem uma coisa que me incomoda em observá-los. É engraçado que, falar que alguém parece uma representação desse período é um elogio e tanto, não é? Parecer essas musas, ou até mesmo ter o porte dos homens, tudo lindo. Mas tem algo relacionado com o tempo que me incomoda. Tudo que está ali é estático. Pertence à esfera do inalcançável. Uma sensação claustrofóbica me apodera, só de imaginar-me presa naquelas paredes, mas ao mesmo tempo, até um certo momento da minha vida era o que eu queria. Deus me livre, mesmo cheio de espirituosidade, me parecer com uma das mulheres de Picasso ou de Gauguin. No máximo ser uma figura de Seurat, na esperança de poder me desmanchar assim, sem querer, num olhar cheio de vesguice. Mas estou ali na parede, sustentada por uma camada concreta com milhões de figura, e nós na mesma história. Mas não sei, não quero mais fazer parte deste roteiro. Talvez em um chá com uma escultura de Rodin, esta me conte que as marcas são inevitáveis pra poder se deslocar daquele espaço. " É o processo", diria com uma expressão reflexiva , bebericando uma gota de chá que pingava da ponta de seu dedo. É o processo. Existir em si. É um tanto óbvio, mas é difícil. Alguém te mostra a estrutura e você acredita que é ai que tem que ficar. Mas ai surgem outras possibilidades, mas no final das contas dá na mesma não é? Afinal a desestrutura também parte de uma estrutura. No final nem Seurat, nem Gauguin, nem Rodin, Picasso Matisse Pollock I-N-G-R-E-S. Preciso urgentemente inventar uma coisa minha, para que as extremidades do meu corpo passem a ter contato com o ar e não com uma estrutura que me sutente, mas ao mesmo tempo me engole. Porque pode ser, não pode? Não dá pra saber se a figura brota ou adentra a pedra. Nunca se sabe, vou adentrar essa liquidez moderna, só vou lidar com o que é meu.
Balzac com suas roupas movimentadas no metal duro me observa.É o processo...

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

Supermercado

Foi no mercado. Na parte da feira.
Haviam frutas variadas, e aquele colorido anunciava que haviam tido boa safra desta vez. Frutas em demasia, grandes, gordas, tilintando alegremente nas prateleiras, quase em um comportamento humano de se oferecerem, eram assim que estavam.As bancas haviam sido divididas por cores, não tipos, era uma grande palheta alimentícia no meio daquele cubo meio concreto e meio metal.
Em um canto, perto das frutas vermelhas, havia uma garota parada. Era meio franzina, meio branco, mas tinha algo nos olhos que a tornava interessante. Talvez fosse a forma que ela olhava as ameixas. Eram ameixas lindas, bem redondinhas e avermelhadas, empilhadas uma em cima da outra, e de vez em quando rolavam de cima da pilha, assustando a garota e tirando-a por momentos de seu transe. Aquela garota era um barato, sabe, legal mesmo ficar olhando, ela devia achar que ninguém reparava nela, então acabava tendo uns tiques espontâneos, sabe, desses que a gente geralmente tem quando está planejando algo muito importante. Em um gesto furtivo agarrou uma das ameixas. Não teria nada de espetacular no fato, se não fosse a forma como a agarrou. Estava claro que ela não compraria ameixas, queria apenas uma, apenas aquela que como um tesouro ela segurava na palma da mão. Era uma ameixa bem redondinha, com um cabinho mostrando-se timidamente se olhasse direito. Cabia na palma da mão da garota, numa concha perfeita. Parecia suculenta, por como a garota apertava de leve aquela fruta, fechando levemente os olhos a cada apertão. Passava de uma mão pra outra, sentindo com a ponta dos dedos a superfície lisa e avermelhada. Um pouco tensa, olho para os lados para ver se alguém observava, se alguém percebera o que estava acontecendo ali. Seu rosto relaxou, e a nudez dele foi coberta por uma vasta cabeleira, ela desmanchara o rabo de cavalo. Com a fruta ainda na mão, cuidadosamente levou-a perto do rosto, e a cheirou vagarosamente. Eu não podia me mover. Segurou firme e levou-a perto da boca. Encostou os lábios, colocou a ponta da língua, e com uma ousadia terrível mordeu a fruta, espirrando seu sumo para todos os lados.
Foi a glória.