terça-feira, 26 de agosto de 2014

Mal do século: verbete

Composto por uma parcela de melancolia resultante de uma super produção de bile, combinado com um frenesi por conta do aquecimento do sangue, as pessoas que padecem do estado amoroso, infelizmente, procuram a cura de tal doença em raríssimos casos, pois seus sintomas são muitas vezes diluídos ou confundidos com outros estados emocionais eufóricos que causam essa sensação de bem estar momentânea; mas qualquer pequena frustração que acomete esse ser amoroso é o suficiente para desmanchá-lo e fazê-lo criar na pele pequenas protuberâncias e cicatrizes como se feitas com material incandescente; sensação de salto agulha sambando no peito: insistente e agudo. Em alguns casos, não raros, são tomados por alucinações e enxergam o objeto de afeto em todos os espaços, insistem que o carregam dentro: como se fosse possível afirmar com tanta certeza que além de si há outro que ocupa espaço dentro do nosso corpo (enxergam-se explodindo e nos casos mais graves arrancam a própria pele dizendo que assim arrancam também o outro((alguns, mais radicais ainda, colocam-se do avesso, vomitam as entranhas, atiram pedaços de intestino e expulsam, expulsam tudo que acreditam estar contaminado e preenchido)), sem perceber que assim, na verdade, se desfazem de pedaços que lhes são pertencentes, e a mais ninguém). É um diagnóstico complicado de início mas a idiotice logo se sobressai, tornando fácil indicar aqueles que padecem de tal estado: vagam com sorrisos tontos na rua, um olhar débil e sonhador: a língua vulgar, em uma tentativa de fazer-se poesia, se desenrola em palavras complexas ditas vindas de algo divino, que nós, os simples, não podemos tomá-las em sua total compreensão, o que as torna mais silêncio que fala: o que as torna mais peso que respiração: mais grudam do que vestem: rebatem no corpo o suficiente para serem engolidas mas não digeridas dando a breve sensação de preenchimento e completude, mas que tão logo se esvazia, condensa, e faz do descomplicado a tentativa de cavar concreto com a ponta dos dedos (a carne machucada arde em um clamor febril na crença das causas impossíveis: mais um dos estágios das alucinações: no campo das impossibilidades, quanto maior o erro, mais palpável ao ser amoroso lhe parece) Há quem diga que nunca se cura, o estado amoroso, mas há relatos de que a cura está no próprio amor, que no fim das contas, tem  seu fim em si, apenas. Estudos datados do século XIII, feitos nas abadias longínquas de Octusburry, diziam que banhos gelados com ervas rasteiras ou uma boa dose de vinho ajudavam a acalmar os ânimos dos frades tentados pelo amor, este causado por alguma campesina dos seios em riste embaixo do trapo de algodão. Iam narrando sensações que dançavam pelo corpo, e de como se elevavam suas partes quase como mágica, fazendo-os chorar por todos os orifícios. Os sintomas são os mesmos há pelo menos 1200 anos, mostrando que, ao longo dos séculos, não progredimos muito com a doença que assola mais da metade da população mundial. Não se sabe ao certo quando começou a disseminar-se, mas há registros mais antigos que o próprio homem de sua presença nos seres mais pequeninos, suspirando trevosos, amedrontados com o agridoce que a doença deixa, abandona na boca.


Nota: Foram encontrados há alguns anos documentos provindos da região de Mouriscânea, rebatendo a crença do amor como doença: do pouco que se conseguiu traduzir de tal idioma barbaresco, entendeu-se que acreditavam que o ser que se mostrava incapaz de contaminar-se com o tal, é que padecia de um estado doentio, blasfemo, vil, cretino, ludibrioso, infeliz, enfezado, requenguela, mentecapto, vesgo, infame, fétido, viscoso, descortês, ignorante e bobo.

quinta-feira, 14 de agosto de 2014

Até tentei escapar

E ai se me apresenta a frase que não é homem e sim o mundo o anormal, mas sempre me perguntei quais são os preceitos da normalidade que a tornam tão palpável quanto se fala dela: é vaidoso dizer-se dono da consciência em sua totalidade, em sua plenitude, sabendo dos arroubos de espontaneidade animalescos que nos tomam de surpresa em um comportamento um tanto debilóide: tanto dentro de uma tristeza quanto de uma alegria desmedida escancarando a boca cheia de dentes, fazendo-se avesso, secretando por aí as coisas que se diziam vergonha: deixa um rastro gosmento na calçada que brilha em dia de sol enquanto sente o corpo pulular alegrinho, o pé empurrando o chão em uma tentativa de vôo, mesmo reconhecendo o peso: mesmo ciente da queda. Ora, e de que importa esborrachar-se feito um purê desengonçado neste plano horizontal que se diz feito para caminhar por cima, quem liga, quando à contravenção, o corpo é tomado por um ânimo ( e aqui evoco toda a ancestralidade etimológica da palavra ânimo, porque só assim ela se fará compreensível no tipo de ânimo que falo, sabe? o ÂNIMO, aquela coisa do caralho que te toma e UAH, te faz soltar um brado vivaz e ridículo feito pirata em cima de uma canoa para enfrentar a tal da tempestade feita uma nuvem só) uma vontade cômica de esparramar-se cortando as linhas fronteiriças com uma tesourinha: recorta a boca o crânio a coluna vertebral e o períneo esparramando o amor, a vontade e o monte de bosta presa ( sempre me perguntei como as coisas sublimes sobrevivem no corpo nadando no meio de tanta porcaria) pelo chão, sabe? o chão do mundo, a calçada infinita que em algum momento da vida desemboca em alguma avenida 9 de julho espalhada por aí, em alamedas de natureza artificial com árvores feiosas de luzes de natal. A coisa é, tem diferença a minha anormalidade com a do mundo, se o construo e secreto nele todo o meu serzinho, esse euzinho umbigado que caminha arrastando-se, sonhando agarrado a postes, lambendo o corrimão das pontes para acessar as mil línguas que se debruçaram contra o parapeito em devaneios de vidamorte enquanto se levantavam os prédios? A loucura do mundo é só uma faceta minha e vide o verso.

sexta-feira, 8 de agosto de 2014

útero

E este útero me atrai a nunca sair, circundado por flores em suas paredes sanguíneas, pequenos botões sempre no aguardo, na promessa de um desabrochar tardio: não gostaria de sair sem ver o rompante das flores, ainda mais sabendo que lá fora é inverno e as roseiras são escassas: tentam suaves romper o muro de concreto que se constrói na esperança de recriar essa casa há muito abandonada: não se pode ouvir tão de perto o palpitar de um orgão bombeando vida para todos os lados (seu ritmo me nina enquanto nado tranquila na fronteira protetora: mas o que? rompeu: projeto-me para baixo com a velocidade de um tiro).

: a partir deste momento, tudo caminha para sempre em uma eterna separação.

quarta-feira, 6 de agosto de 2014

Babélico

Há um tempo me assombra a ideia de que talvez fale certo idioma Babélico disfarçado por um véu dionisíaco que esconde o tédio que se escapa tanto de mim que falo, quanto daquele que no esforço de ouvir, perde-se nos rompantes de sons incompreensíveis e significados dúbios de uma língua já velha, exausta de movimentar-se na boca seca de mel: salga o paladar de comida fria enquanto observa mil bocas mastigarem na sua frente com a estranheza de quem observa de perto um inseto deglutindo o alimento: porque não se proíbe que se coma diante o outro? A mesma boca vil que blasfema mantém o ser melancólico vívido esturricando-lhe o sistema digestivo de mil nutrientes que não contemplam a ausência de coisas mais vitais, mas há quem diga que amor não suporta um estômago vazio. A boca: mastiga, movimenta a comida de um lado para o outro, restos de alimento escapando em uma fala incongruente, enche a boca de gás: a mesma que irrompe a boca alheia com a língua: que molha a buceta no quarto escuro, sorrateira mergulhando mais e mais no corpo entrevado, a língua doce de secreções lambendo o resto do corpo, escreve com a saliva palavras incompreensíveis nas minhas costas Benedictus ore in my ass, não rasgue o véu há muito tão bem colocado: é derme: suas mãos escalpelam e me fazem nua em carne-viva: exposta, vulgar, o sangue-suor escorregando pela testa pescoço, pingando no lençol branco: corpo alimento.