Como a minha avó já era velha quando eu nasci, aconteceu de eu ficar esperando o dia em que abriria a porta do quarto dela, tentaria acordá-la e a encontraria morta. Não que isso seja uma vontade, claro, mas é que depois de ver tantas vezes a cabeça dela despencando de sono nos momentos mais repentinos, fica um tanto difícil não pensar nisso. Certa vez ela dormiu no genuflexório que tinha no quarto onde rezava para o Santo Expedito, São Bento, Santo Antônio, Santa Rita, Santa Barbára, Nhá Xica de Baependi, Jesus menino, Jesus Adulto, Sant´Anna e Zé Pilintra. Na verdade, não a culpo: duvido que haja alguém que não durmiria se tivesse que rezar para tanta gente. A única coisa é que tombaria para o lado, não para frente como ela, os pézinhos para o alto com as meias auxiliares de varizes toda frouxa na canela. Nunca perguntei se a meia, no estado em que estava, ajudava para alguma coisa. E o fato é que não perguntarei mais também, pois enfim, o tal dia em que ela dormiria e não acordaria mais fez-se concreto.
A grande questão nunca foi a morte: e sim encontrá-la morta. Sempre gostei muito da minha avó, mas não sou a maior fã de defuntos. Aquela coisa toda deles ficarem duros, aquela boca entreaberta, tem algo de ridículo nisso tudo. Morrer não parece lá o ápice da dignidade, sabe, o jeito que a gente fica, parece uma piada esquisita para quem olha. Bom, para o morto mesmo tanto faz, acho que não liga muito, fica lá tranquilão com as melecas escapando do nariz, dando os últimos peidinhos: morrer é o único momento da vida em que a natureza fisiológica não é incômoda: nem para você, e nem para os outros que estão muito ocupados tendo saudade para ficar fazendo tantos reparos. Mas ai de você se fizer isso vivo, ai.
Em partes, pensando bem, até gosto dos mortos: reparam menos, medem menos e não torram muito o saco com o que você está fazendo. Por isso vou tanto em cemitério: gente morta não palpita quando estamos ansiosos. E isso fica mais claro quando, andando pelas ruas da necrópole, topo com algum morador de cemitério (não de rua). E o que ele faz, como todo bom ser humano vivo? Começa a falar de coisas que você não entende em um momento que você não quer. Mas voltando ao fato, a minha vó um dia não acordou enquanto estava no banheiro. Demorou tanto, que tivemos a indelicadeza de perguntar:
- Ô vó! Morreu ai dentro?
E não é que ela tinha morrido mesmo? Ela sempre falou para tomarmos cuidado com essas brincadeiras. Tenho uma vizinha que diria "é o Karma". Sempre, sempre fala desse tal karma e eu tenho vontade de rolar de rir quando ela começa, nossa cair no chão, mas só quando estou bem e feliz acho o karma engraçado. Quando estou triste procuro prestar mais atenção, nossa, estudo e tal, fico preocupada com o curso do mundo fico repetindo " Om mane padma hum" no metrô e um grande dia ele retoma a graça de novo. O tal do karma é a ironia dos santos que a minha avó rezava, preciso dizer isso para minha vizinha, essa é a revelação. Falando nisso, outro dia perguntei para a minha vó, que rezava tanto, para onde ela achava que iríamos quando a gente morresse:
-Ai filha, não sei. Acho que a gente fica andando por aí...
Porra vó! Andando por ai, sério? Quase explodi de rir, não na frente dela, ou foi? Enfim, andar por ai era a última resposta que eu esperava receber, e ai, quando a encontramos sentadinha e mortinha lá no banheiro, só pude pensar se ela estaria andando por ai. Só espero que ela não tenha esquecido de subir as calças, coitada, andava muito esquecida a velha, uma senhorinha tão elegante, eternamente com a bunda de fora, já pensou?
Ah é, desculpe vó. Talvez isso não lhe importe tanto agora...
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