segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

Do milagre que não sou eu

A coisa é: em algum momento da vida, e pode ter certeza que esse momento é uma das poucas coisas certeiras, nos depararemos com as seguintes palavras - catarse e epifania. Alguns se demorarão em suas letras, tentando extrair das sílabas alguma explicação significativa; outros farão suposições e outros passarão reto por elas e talvez nem se apercebam da existência dessas palavras, e quando as escutarem de volta farão aquela cara de "hãn" e o instante passa. Para quem se interessa, o significado delas, segundo o dicionário:

catarse: 1. Purgação 2. Purificação 3. Método de purificação mental que consiste em revocar à consciência os estados afetivos recalcados, para aliviar o doente dos arranjos físicos e mentais oriundos do recalcamento.
epifania: Manifestação de Jesus Cristo aos gentios na pessoa dos Reis Magos que o vieram adorar. Comemorava-se este acontecimento como a festa litúrgica da epifania.

Parecem estranhas quando olhadas desta maneira, mas foram emprestados a estas palavras significados além dos seus originais. Podem estar associadas à revelações e transformações ocorridas a alguém por conta de um acontecimento. Esse sentimento repentino, mesmo que passageiro, de finalmente ter compreendido a essência de algo, de ter conseguido finalmente visualizar o "todo", que ninguém sabe explicar o que é, mas sente.
Uma dúvida frequente em mim, é de como nos damos conta de ter vivido uma experiência desta, pois, sentimos tantas coisas ao mesmo tempo e somos estimulados por tantas formas, que eu tinha medo de que isso acontecesse e eu não percebesse. Ou então caía em um erro constante de minha pessoa: que tudo só é sincero se nos sentirmos arrebatados - o sentir pela dor, pela falta de ar. Ora, e depois falava de estar em paz. Vai entender...
Antes, podia citar vários momentos em que achei que pudesse ter vivido uma destas sensações, e talvez até tenha, mas nada como a história que vou contar agora.
No final do ano fui para Minas Gerais sozinha. Queria conhecer Inhotim ( um museu de arte contemporânea à céu aberto), aluguei uma pousada no meio do mato, e de lá, entre ônibus demorados e caronas me virava para ir de um lugar para o outro. A gente sempre conhece muita gente boa com esse tipo de coisa, ouve histórias, facilita uma disposição para trocas. Mas isso é fácil também quando o espaço é algo conhecido, te mantém na zona de conforto - as pessoas que estariam lá, seriam pessoas minimamente interessadas em arte como eu, então, entre um sorriso e outro, as coisas se facilitariam para a aproximação. No terceiro dia de viagem decidi que iria para Belo Horizonte, peguei um ônibus que passava em intervalos de 5 horas - saí às duas e teria que estar no ponto dele em BH religiosamente às sete horas, pois era o último do dia. Fui. Andei pela cidade, dei uma volta, comi, fui no cinema, fui olhar livros ( que os mineiros separam a seção literária entre escritores brasileiros e escritores mineiros), e, com uma pontualidade digna de inglês, lá estava eu no ponto às sete, e lá estava o ônibus. No duro, a estrada para ir de BH para Córrego Ferreira, que era onde eu estava, era simplesmente incrível. Descia-se toda a serra, e lá de cima podia-se ver aquele mar de morros e umas cidadezinhas bem pequenas ali pelo meio. Era incrível e demorado, mas o incômodo se fazia insignificante diante da vista que se tinha do ônibus. Fui ficando embriagada de beleza, mesmo, nunca tinha visto nada igual, e foi escurecendo, e comecei a conversar com uma senhorinha, e anoiteceu, e eu ficava olhando a estrada, foi ficando mais escuro e já não dava pra ver nada direito, até que, depois de quase três horas, me dei conta de que havia perdido o ponto, e pior, não só o ponto como a cidade!  Devo ter feito uma cara de merda tão fenomenal, mais tão fenomenal que uma outra senhora começou a perguntar se estava tudo bem comigo. Bom, estava em um lugar no meio da Serra, não conhecia nada, não tinha pra quem ligar, minhas coisas estavam na pousada, o último ônibus era o que eu estava, não tinha como voltar a não ser a pé por uma estrada de terra com pouca iluminação, e no meio de um nariz fungado de choro não tinha como disfarçar que não, não estava tudo bem. Sei lá o que deu na cabeça dessa senhora, ela disse que podia me ajudar, que conhecia o lugar que eu estava e que podia me dar uma carona, mas antes teria que acompanhá-la a um compromisso inadiável. Merda por merda eu fui, e não é que o compromisso era o culto? Porra, justo um culto! Nem lembrava qual tinha sido a última vez que tinha visto uma missa, muito menos um culto e  surgiu então aquele ranço. Mas, como não tinha solução melhor, sentei no banco e comecei a escutar. Minto, muito mal disposta comecei a lamentar o infortúnio. Saí para andar em volta, mas, em respeito a senhora que me levara com tão boa intenção resolvi que ia sentar e ficar quieta. Do meu lado, havia um senhor, muito muito compenetrado no que dizia a pastora, acreditava mesmo, era bonito de olhar, nossa, aqueles olhos aguados de gente que parece que está realmente entendendo as coisas. Mas tinha grande dificuldade em procurar as passagens bíblicas, e para que ele não perdesse a compenetração dele, me ofereci para buscar. Primeiro quis rir, mas lembrei que eu sabia fazer aquilo - apesar de minha postura diante a religião ser crítica, fiz catequese e tudo bonitinho. E ele ficou feliz. Com isso só. Não sei o que me deu, que resolvi prestar atenção, finalmente, na pregação. E era bonita, tirando os excessos cometidos por um fervor religioso, era bem bonita, na verdade. Bonita demais. Falava sobre como temos que ter disciplina diante das nossas escolhas, e força, muita força, para seguir com estas adiante, pois é um processo inicialmente dolorido, mas que te transforma quando algo é alcançado. Para ter fé, nas coisas que se escolhe, e se doar, integralmente nelas. Pronto, era isso. E são coisas que não são difíceis de se ouvir por ai, é quase uma filosofia de bolso, mas foi ali, em uma igrejinha, no meio do mato, evangélica, onde fui parar totalmente por acaso, de má vontade e levada por uma desconhecida, que estas palavras finalmente surtiram efeito. Havia um muro real em mim, que naquele momento abriu uma fenda. Primeiro, porque me fez ter uma vergonha sincera do meu posicionamento no mundo, pois trabalho como arte educadora, que lida muitas vezes com diversos paradigmas, e hipocritamente os meus não haviam sido rompidos, pois, se não fosse uma situação dessas, dificilmente acharia que aquelas pessoas teriam algo para me acrescentar. Outra coisa que pegou forte foi a gentileza, e não era fingida. As pessoas estavam felizes de estar ali e poderem compartilhar - eles não pediram dinheiro, em nenhum momento. E no final, a pastora veio conversar comigo e fui tida como um milagre " a menina que se perdeu, porque Deus tinha um plano para ela - que ela ouvisse a palavra Dele". Sei lá. Eu achei engraçado, gente doidona, vê milagre em tudo. Mas com uma leve pontada no peito, a constatação de que talvez fossem muito melhores que eu, que não vejo muita coisa em nada. Chegou a hora de ir embora, e não é que quem me deu a carona foi o pastor? Ele colocava um pessoal todo dentro de uma Kombi velha, e ia distribuindo todo mundo pelo caminho. E fazia isso para eles irem no culto também, com uma alegria imensa, pois tinha fé na escolha deles. Era um senhorzinho alto, bem caipira, com chapéu e tudo que adorava tomar café. Começou a me contar como chegou naquele lugar, que era do Mato Grosso, e quando jovem mudara-se para São Paulo para tentar a vida como compositor sertanejo, e no meio do negócio viu algo, que não me disse o que era, que o fez ter certeza que Deus existia. E que, a partir daquele momento, decidiu que iria pregar, e como em São Paulo já haviam muitas igrejas, tentaria cumprir com sua missão em um lugar mais inóspito. Ele e a pastora, que vê milagre em tudo. Nossa, aquilo me deixou louca, de verdade. Me deixou na porta da pousada, me deu um abraço, e foi embora com sua kombi.
Não conto aqui a história de uma conversão. Realmente, a questão da religião me põe um pouco tensa sempre. Quando voltei de viagem, as primeiras vezes que contei essa história, a passava como uma anedota. Mas, sempre vinha do fundo uma vontade de chorar, e que não era triste. Era uma emoção, não sei ao certo. Eu não era um milagre, decerto que não. Eles foram pra mim.
Eu sinceramente demorei para digerir a coisa toda, mas alguma coisa depois do acontecido mudou seriamente em mim. No duro, eu acho que sou uma pessoa que deu muito errado em vários aspectos, e não falo isso com melancolia, tem algo de cômico em tudo isso.Mas desde então, tem alguma parte minha que entrou no eixo de mim finalmente. E ela não mexe, nem escapa, nem dói. A centelha divino que eu vivo falando para os outros, o universo que possui lógica própria, os encontros e desencontros que provém de uma espiral, tudo o que eu sempre falei e agora vejo, que não sei se confiava tanto, começaram a ser mais sinceros em mim. E olha, essa coisa de se perder pra se encontrar, pode ser verdade. Talvez exista um Deus mesmo, e existam milagres, talvez seja só acreditar mesmo, não custa muito. E daí se for invenção? A coisa parece toda mágica quando se acha que existe. Desde então, não me senti mais sozinha, ou aflição por isso, mesmo. Ás vezes só penso que não seria legal. Não sanei muitas coisas, mas abri a fenda no muro. Sei lá. Respondi ao medo da possibilidade de ter uma epifania ou uma catarse e não percebê-la. Não sei se há uma linha que separa o antes e o depois, mas um dia você acorda e o mundo está muito diferente, e você está cheio.
Eu queria voltar naquela igrejinha qualquer dia, mas, sinceramente, não faço a mínima ideia de como chegar lá.

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