sexta-feira, 17 de outubro de 2014

O teatro da memória

Tenho uma tia, muito querida, que adorava ensinar essas pequenas/imensas coisas da vida. Ensinou até os dias que pôde: não que a morte a tenha levado de braços dados para qualquer lugar inférnico, mas acho que em dado momento da vida, houve o ensejo de parar e não fazer mais nada além de ensinar a si mesma: são esses equívocos da memória.
Detalhista,talvez fosse a palavra maior para descrever a tia Norma: detalhista. Enxergava além da miopia cotidiana e possuía, sabe? Alguma lente mágica que captava coisinhas desapercebidas nos outros e até mesmo nos espaços: a falha do dente, a migalha de pão, o esmalte comido na ponta da unha. Nada assim, metafísico: era na gente mesmo, os pormenores. E repetia com a sabedoria de um gato quando olha a janela que eram nessas falhas que se podia captar a falta de caráter (sempre desconfiei do que ela realmente queria dizer com isso). Dizia sempre, que tínhamos que prever as olhadas furtivas e estarmos sempre preparados para surpreender, para criar assim certa graça para quem olha. Levantava-se majestosa e na meia volta que dava com o corpo, dava para espiar um band-aid colado no cotovelo, cheio de bichinhos. Logo nosso olhar se encontrava de volta e me presenteava com uma piscadela cúmplice, como uma criança travessa que esconde o doce dentro do armário. As unhas, sempre cor de areia, mas em uma, especialmente, uma listra escarlate. Na blusa, o ponto ápice de sua aparência, um melancólico botão costurado, único na imensidão do tecido que lhe descia até os quadris. Mas o melhor para mim, e meu estômago se revirava para tal momento, era o tal do brilho que ela passava no colo. Esparramava glitter, purpurina, ou sei lá que era aquilo, e arrematava com uma gota de perfume. Retirava-se cintilante pela porta deixando aquele rastro de luz artificial pelo caminho, e eu, pequena, me encolhia na poltrona da sala da minha vó, ansiosa para o momento do retorno. Horas sentadinha para o momento em que visse girar a maçaneta, e uma tia Norma cansada da noite apareceria risonha arrancando a blusa no meio da sala, os seios já flácidos derrubando o remanescente de brilho no chão: e caíam como qualquer coisa mágica, girando em órbita no mamilo que resistia cansado à gravidade, pousavam leves no chão empoeirado que ela havia esquecido de varrer. Era um espetáculo.

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