sexta-feira, 17 de outubro de 2014

Explanação

E é porque havia muita gente entre eu e o outro que a espinha dorsal enrijecia como que anunciando a chegada do inverno; e é porque haviam murmúrios escapando pelas rachaduras da sala de estar para o apartamento vizinho - que se punham atentos às inundações secreciosas: escapando de sistemas que convocam o corpo em seu todo - que se fez um abrigo embaixo dos lençóis onde a claridade bate à porta da trama de algodão e se vê obrigada a dar de ombros, a iluminar qualquer esconderijo menos banal como um canto, onde as arestas se beijam em suas perfeitas proporções; e é porque as curtas distâncias entre as casas, ruas, bairros e cidades reajustam-se em medidas incompreensíveis as quais escadas lhe empurram pra cima baixo seu calcanhar sujo: negando-se a amparar o peso, que termina à margem de um salto no escuro: um mergulho em caixas de areia. E é por isso que tosse com a garganta arranhada das mil vozes-espinhos que escalam os tubos digestivos-respiratórios ansiosas para aflorar na prometida primavera, cuspindo pétalas púrpuras de flores que já murcham pela espera; e é por isso que penteia-se na esperança de que fio a fio que se solta, vá desnudando a cabeça branca da cascata que esconde o rosto que já mostra os sinais dos primeiros vincos, consequência da frágil construção de seu lirismo, uma docilidade empalagosa, incapaz de lidar com a força do mundo: cavoca-lhe o ventre com a delicadeza de uma peste que espera o momento certo de estourar desavergonhada de sua mórbida obra; e é porque havia muita gente entre o outro e eu que distorceu as imagens do encontro em seu jardim de espelhos.

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