segunda-feira, 1 de setembro de 2014

E então Deus criou o mundo

É sabido que ao longo da história da humanidade ocorreram inúmeras tentativas de transcrever ditames de um tal pai celestial que tudo vê para melhor orientar a vida de suas crias. Filhos. Enfim, como tal responsabilidade foi delegada ao ser humano que possui o dom natural de emporcalhar qualquer lugar que passe (e deixa rastros de sua ruína, e almeja transpor o tempo para que não se sinta tão insignificante perante as coisas que realmente não são perecíveis: tanto em ordem matérica quanto evolutiva), não é um grande absurdo afirmar que este serzinho bípede dotado da capacidade de produzir letras e com elas criar significados e nuances de pensamentos ad eternum em seus papéizinhos e tabuletinhas, criassem uma séria e por vezes nefasta confusão sobre quais eram esses preceitos deixados pelo Fecundador universal para que nos tornássemos plenos em nossa jornada para o fim descabido, silencioso e incerto que se mantém intermitente, perseguindo-nos junto ao calcanhar como um duplo descarnado e saudoso do contato da pele com o sol. E da pele com o asfalto. E da pele com a pele (e os arroubos de arrepio quando o vento sopra devagar na nuca, anunciando a chegada do algo tão esperado, aquela cabeça que aparece na janela e te assobia a verdade do mundo e a vista turva se faz luz como bundas de vagalumes contra a copa densa das árvores em uma noite de inverno, exibindo a claridade que não precisa tomar emprestado: tenho uma tia que sempre soube, ali na borda do prato mesmo, nunca precisou mergulhar a colher até raspar o fundo para se sentir alimentada, que estas vozes eram a própria lucidez que lhe acenava, mas suas ideias foram meticulosamente desvalidadas por um diagnóstico rabiscado no papel ou algo do tipo com o dizer: ESQUIZOFRENIA).

Muito se falou de tais escritos que foram sendo produzidos, e dos falsos e verdadeiros profetas que prostravam-se contra a fúria do mundo, clamando (blasfemando), traduzindo (inventando), dando a luz (mergulhando na ignorância) multidões de fiéis necessitados desse sopro que em teoria é mais discreto e de corpo mais sutil que um padreco glutão ou um califa assanhado. Ou um hindu levitador. Ou um rabino feito todo de cachos com seu terno de lã em pleno sol da Av. Tiradentes, transpirando seu amor ao ser Divino que provavelmente estivesse com um leque observando-o do paraíso, pois se fomos feitos a sua imagem e semelhança, deve ser então acometido por calores quando o verão saárico se apresenta no mundo. Um grande leque feito de penas do grande pavão cósmico, ser mitológico de algum grupo cultural que passou e já foi e só legou suas anotaçõezinhas desse Ente Maior que se manifestou em algum momento. O grande problema de tais devaneios ancestrais para os estudiosos é que Deus se manifestou de maneira muito distinta para cada sociedade que resolveu se encerrar em um espaço, e mesmo dentro destas sociedades as pessoas divergiram em como haviam se dado estas manifestações. Há uma história célebre passada em Mântua, de um tal Ludovico de Scárnia que atirou-se da torre maior do mosteiro acreditando que o cordeiro lhe revelava o segredo de Ícaro, quando na verdade, disse Frei Jorgues, o que queria dizer Deus era que a incapacidade de voar tornava o ser humano um ser engenhoso: e por isso eram ornitólogos e não pássaros. Frei Jorgues é uma figura que merece especial destaque no estudo da palavra divina, pois, antes de brotarem das rochas testamentos esquecidos ou preceitos ignorados dentro da religião; antes dos protestos e dos franciscanos, antes da caminhada do muçulmano peregrino ou do cair do Imperador Sol, Jorgues já se perguntava sobre a incompletude dos 59.547 textos produzidos ao longo dos anos, os quais todos afirmavam serem a verdade única do Criador. Frei Jorgues também deixou suas anotações- por muito tempo ignoradas- reflexivas sobre a divindade. Diziam:

1. Deus está em todo o lugar, e se está em todo o lugar, somos todos partículas divinas que se desprenderam desse corpo maior que, solitário no céu, desmembrou-se em inúmeros mas finitos pontos de luz para que pudesse compreender o que é aquilo chamado de experiência humana: algo que reconhece ser sua invenção, mas que ainda se mostra muito misterioso para Ele

2. Para tal entendimento, percebeu também que cada qual descobre para si verdades para voltar pra casa, havendo então de se manifestar de formas distintas e irregulares, para tornar-se compreensível a quem necessita compreendê-lo (não conseguiu prever que faz parte da experiência humana desvalidar o outro como forma de submetê-lo: foi ai que Deus conheceu a mesquinhez e a maldade)

3. A necessidade de pertencimento do homem faz com que essas vozes sutis passem desapercebidas, criando a expectativa que ensurdece de encontrar seu igual, sem lembrar que o corpo (mesmo o universal) é a priori assimétrico,então nenhuma das partes poderiam se corresponder em uma forma que não transbordasse ou faltasse milímetros: há quem creia que é nesse estado de desencaixe que mora a perfeição, pois se apropria do espaço vazio como algo natural e participante, englobando em si todas as imensidões

4. A morte destina todos para o mesmo lugar: o de morrer. E em geral o mesmo funciona para outros verbos vitais

5. Quem gosta de "cídios" é a humanidade. Vá e defenda tua crença pode ser interpretado de maneiras mais gentis ( Vide que quando Frei Jorgues escreveu estas premissas, as grandes ciências que pensariam na mensagem e no receptor estavam para ser inventadas)

6. A única forma de se encontrar


Frei Jorgues, pelo que li, não terminou de escrever suas conclusões. Parece que foi acometido por uma vontade de caminhar e não mais voltou, apenas uma vez, pelo que parece, para conversar com o defundo de Ludovico, o voador. Talvez não tenha concluído, mas pelo que tenho estudado, ninguém o fez, ou não muito bem: uma vez cheguei a pensar que estamos todos na fase rascunhal desse ser Criador que deixou o lápis na boca de um cachorro celestial que está rabiscando toda a história enquanto Ele descansa embaixo do seu manto estrelado de céu. Depois ri de tal hipótese.

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