quarta-feira, 4 de junho de 2014

Dora banguela

Ah que saudades da minha Dora. Adorada Dora, que saudades da minha Dora. Era o mantra matutino daquele senhor que passara pela vida dando Adeus aos seres amados. O golpe fatal foi a ida da Dorinha. Nunca a tinha chamado de Dorinha, nem gostava tanto dela assim quando estava viva: a Dora tinha uma irritante mania de se coçar o tempo inteiro e jogava a culpa na circulação ruim; a Dora lavava roupa e louça com o mesmo sabão, a Dora era meio porca, tanto que perdeu os dentes cedo por falta de escovar: a porca dizia que isso era coisa de propaganda americana e que nunca se escovou os dentes como no século XX. A coitada da Dora nunca estudou, era burra, mas aquela boca desdentada e fedida fazia milagres embaixo do lençol: nada como uma boa boca sem dentes para fazer qualquer homem virar os olhinhos. Ah que saudades da Dora, era uma menina quando a conheci e metia-lhe a mão por baixo da saia para vê-la ronronar que nem um bicho: a Dora nunca foi muito gente. Morreu um pouco quando foi tirada do mato, ficava olhando a janela feito ave empoleirada por horas e horas, nunca dava para saber o que pensava porque Dora não gostava muito de pensar. Sempre fazia perguntas descabidas como qual o sentido de viver da forma que se vive e como não se angustiar diante de tanto mundo. Que tanto mundo, Dora? Você é burra? E ele vinha e lhe mostrava o mapa: Não é tanto assim - e com o dedo traçava rotas em cima do mapa - Viu? menor que aquela manga em cima da mesa. Come manga Dora, que fiapo nenhum fica preso na sua boca banguela. E lá ia Dora feliz com a sua sorte descascar a manga. Como ficar na casa depois que Dora se foi? Dora era especial com seu vestidinho pobre de algodão, sua pele encardida, seus pés dançarinos pisando no quadradinho de grama no quintal. Antes de morrer pediu pra ver terra, e o velho levou um vaso. Dora se debulhou a chorar, queria terra. Ô mulher burra da boca de ouro. Ah Dora, se eu tivesse lavado seus cabelos, ah Dora se eu tivesse quebrado o concreto do pátio do quintal e tivesse plantado um pé de alecrim, ah Dora, como ficar nesta casa com tantos retratos e as manchas de sujeira que você nunca conseguiu, na verdade, nunca quis limpar? Dora dizia: É o tempo tomando espaço no móvel escuro; é o desgaste se fazendo presente na parede: a morte espiando, benzinho. Devia ter feito algo com a cabeça maluca da Dora, falava cada coisa aquela mulher! E ele amou cada dente que caiu, em segredo guardou todos e agora os carregava no pescoço em um colar. Um vizinho disse para ele: Reforma a casa! Pinta as paredes, troca as fotografias, arranja uma moça. Como explicar que moças possuem dentes? Enterrou o último de seus amores no cemitério central num caixão barato de madeira clara e detalhes de plástico prata. Dora nunca ligou pras riquezas, então não ia ser agora que ia gastar dinheiro com caixão. Tchau Dora, minha bem amada, o travesseiro ainda exala o cheio azedo da sua pele suada de pesadelos. Enterrou-a com todos os santinhos: a Dora adorava aqueles santos, mas não sabia rezar direito. 

Decidiu então reformar a casa, e como era muito esperto aquele velho, fez na casa o que fazemos com as grandes dores: sobrepôs cada azulejo com outro de gosto duvidoso, colocou papel de parede em cima de outro velho papel, pintou as cerâmicas do banheiro com rolo de tinta, quebrou o concreto do pátio até achar terra. E assim viveu, alguns poucos anos mais, sobrepondo pisos, paredes e cavando buracos no chão até perceber que a casa havia se achatado: assombrado concluiu que não haveria espaço para outra pessoa ali dentro e finalmente ficou em paz. Ah dorinha, todos esses anos, e agora entendo quando você dizia que azulejo era frio. Morreu em meio esse arroubo de lucidez no piso que era quase teto. A casa ficou muito tempo ali como um monumento a saudade que aos poucos não se soube de quem. Os vizinhos falavam de um velho excêntrico que um dia se pôs a colar azulejo para preencher espaço, mas era uma história desinteressante: inclusive, diziam, o piso original era mais bonito.

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